Aqualung, 50 anos – A anatomia de um discaço

Aqualung

Por Luis Fernando Rios

Ian Anderson, mente pensante, líder incontestável do Jethro Tull, tinha apenas 23 anos quando o sui generis “Aqualung” foi gravado há exatos 50 anos. Ao observar as letras e seu instrumental balanceado (rock, folk, hard progressivo e pitadas de jazz), temos um trabalho sem precedentes na sua época! E continua não tendo. O Jethro Tull é uma banda que não pode ser comparada com nenhuma outra e seus álbuns clássicos, idem. A sonoridade é única e difícil de ser copiada.

No que diz respeito as letras dos álbuns da banda, uma dose de concentração e perspicácia devem ser usadas pra tentar entender a linguagem muito irreverente e ácida de Anderson. “Aqualung” não é um álbum conceitual segundo o flautista, violonista e vocalista, mas temas centrais que versam no disco se entremeiam e confundem-se, e a mensagem que é passada é riquíssima, apesar de ser deveras “non sense” em alguns momentos. Ouvindo a música e a distribuição perfeita entre os “riffs” hards agressivos de Martin Barre, as batidas ora cavalares, ora jazzísticas de Clive Burr, os pianos de John Evans (mais novo na banda), violões, a base rítmica pesada e tudo isso regado pelas letras atrevidas e afiadas de Anderson, entendemos porque esse álbum chegou facilmente em 1° na parada americana e transformou a carreira da banda.

O Jethro Tull havia gravado três álbuns e apesar de boas colocações nas paradas, precisava de um disco que fosse mais do que esses antecessores. “This Was” (1968) que foi o “debut” (teve o guitarrista Mick Abraham que seguiu depois pra um lado mais folk-blues) e “Stand Up” (1969), que veio logo em seguida, eram excelentes e obviamente com o tempo se tornaram clássicos. Traziam em seus DNAs, características musicais baseadas no jazz rock, blues e no folk. “Benefit” (1970) já pendia um pouco mais pro hard rock clássico com mais pianos e orquestrações que eram muito comuns naquela virada de década. Mas Ian Anderson buscava o grande sucesso.

O ano de 1971 trouxe a luz finalmente o grande disco da banda até aquele momento. A capa trazia a ilustração de um velhaco desabrigado e maltrapilho. Desenho inspirado numa fotografia tirada pela mulher de Anderson na época. Ela fez essa foto e outras, num beco pobre e fedorento de um bairro de Londres onde se encontravam pessoas sem teto e desafortunadas. Toda essa estória e esse personagem inspirou parte das canções do álbum que não é um disco conceitual e nem um disco de rock progressivo sinfônico. Estilo que estava muito em voga. É pura e simplesmente Jethro Tull.

“Aqualung” é um disco de rock, mas com a capacidade muito peculiar de adicionar os violões, o contraponto da flauta e pianos pra suavizar as grandes passagens “hards” marcantes, principalmente proporcionadas pelos riffs do talentoso Martin Lancelot Barre.

Uma sonoridade bem renascentista é extremamente bem mesclada com a intensidade das guitarras e peso rítmico. Era muita complexidade musical, algum toque progressivo, muitas passagens com arranjos clássicos, peso em determinadas canções antológicas, o folk, suavidade em outras faixas acústicas e baladas com passagens de extremo bom gosto.

Os responsáveis pela maviosa sonoridade deste impressionante álbum são: Ian Anderson (violão, flauta, piano), Martin Barre (guitarra e violão), Jeffrey Hammond (baixo), John Evans (piano), o poderoso Clive Bunker na batera e David Palmer (orquestrações e condução da orquestra). Que “line up”. Estes caras construíram um álbum extremamente rico e diversificado. Eles já tocavam juntos a algum tempo e isso fez toda diferença.

Falando das letras, a capacidade de Anderson de ir direto ao ponto o colocou como um dos grandes de sua época, que já contava com grandes letristas como Roger Waters (Pink Floyd), Jon Anderson (Yes) e Peter Gabriel (Genesis), por exemplo. Ele conseguia ser irônico, inquieto, “non sense”, agressivo e polêmico na escrita.

Para cantar, a dramaticidade e irreverência no gestual e na entonação de sua voz era um espetáculo à parte. Neste disco, Ian Anderson usou muito esses ingredientes, aliados ao toque de sua flauta pra trazer a teatralidade que se percebe em todas as músicas.

Ao vivo, depois na turnê, isso se elevou potencialmente. Os grunhidos de sua voz e respiração, entremeados com a flauta são uma marca registrada. Os momentos mais líricos e o canto leve nas melodias das baladas são fascinantes. E as vocalizações nos momentos mais elétricos e pesados, fazem com que quando você ouve o álbum do início ao fim,  a impressão da intensidade de cada pedaço, de cada música se dá muito através do canto de Anderson. A riqueza da música, das nuances apresentadas ao longo das estórias e a complexidade das letras, são de fato o que leva esta obra a ser tão singular. Assista esta maravilhosa versão sinfônica da faixa-título em performance de Ian Anderson com a Neue Philharmonie Frankfurt, em dezembro de 2004, no Rosengarten, em Mannheim (Alemanha), sob a regência de John O’Hara.

 

 

Dissecando uma obra-prima

O lado A do vinil fala do estilo de vida de pessoas desprovidas de recursos morais, financeiros e de amor próprio. O mendigo “Aqualung”, prostitutas e outros, além de estórias “non sense” contendo esses personagens, são o que norteiam essas canções. O lado B já traz a temática da religião. Será que você precisa da religião pra se conectar com Deus? Parece que o conceito anticlerical habitava os pensamentos do polêmico músico, que diz ter vivido num ambiente religioso em sua infância, mas que hoje considera que esse universo uma verdadeira hipocrisia.

Apesar desse panorama pesado, a música do álbum é tão agradável, visceral e impactante, que recomendo você a colocar seus fones, preparar um chá inglês ou se servir de um bom whisky e se debulhar em emoções ouvindo essa pipeta de ouro do rock inglês de um dos anos mais profícuos daquela década. Feche seus olhos e se sinta numa taverna medieval ou se imagine no Royal Albert Hall ouvindo a flauta de Ian, que simboliza uma das mais distintas e particulares bandas de rock de todos os tempos.

Pegando música por música, vamos falar sobre o teor das letras e sobre algum detalhe ou outro, a respeito dos arranjos em si. Leia sobre elas enquanto ouve esta versão Deluxe de “Aqualung”, acrescida de três faixas extras e uma entrevista com o próprio Ian Anderson:

‘Aqualung’, faixa por faixa

“Aqualung”: Fala sobre um morador de rua arruinado que come restos de comida das lixeiras e que fica mexendo com as meninas que passavam pelo banco da praça onde ele estava sentado reclamando de sua ruína. Tem um dos riffs de guitarra mais emblemáticos do rock, bem como um solo longo e complexo maravilhoso, harmonizado com o piano. Tem nos vocais toda uma teatralidade e drama que dá vida ao personagem e faz você pensar na sua vida e na sua sorte. Um toque progressivo muito peculiar com violões, piano e levada suave. Tudo isso embebido num vocal ora melodioso, ora forte. Apoteótica!

“Cross Eyed Mary”: Uma das meninas que o mendigo Aqualung viu passar na praça era Mary. Prostituta, que tanto fazia sexo por dinheiro, como também “dava conta” de velhacos como esse personagem do álbum, por pura pena ou pra dar-lhes alegria. É um rockaço! A flauta inicia a música com o piano e percussão e progressivamente vai ganhando intensidade. Guitarra berrando, baixo marcante, um solo maravilhoso de guitarra, o piano e o órgão belíssimo na base e Ian cantando muito bem e agressivamente. O Iron Maiden fez uma versão espetacular desta canção com peso e magistral!

“Cheap Day Return”: Tema bem pessoal, mas que tem a ver com o contexto dessa primeira parte do disco. Narra a visita que Anderson fez a seu pai, que na época estava adoecido num hospital na cidade de Blackpool, para trazê-lo para Londres. Ele foi de trem e fez uma baldeação em Preston. No hospital, teve uma conversa com a enfermeira meio que de fã e ídolo. Ela lhe oferece chá, no momento em que ele assinava para a retirada do paciente. Linda melodia de violão e vocal.

“Mother Goose”: A mais surreal! Letra abstrata que dentre outras coisas, fala sobre uma autora de contos de fada, estudantes chorando pela perda de um amigo, um criador de galinhas, a praça “Picardilly Circus”, que obviamente você sabe que não é um circo e sobre um espantalho. Não se sabe se ele, Anderson ou Aqualung foi quem “viu” todo esse panorama “non sense”. Mas a música é uma delícia. Semiacústica e com uma melodia que é entremeada por uma percussão com uma pandeirola e o bumbo. Vocal muito cativante e a flauta presente e uma guitarra no final, dando uma dramaticidade típica.

“Wond’ Ring Aloud”: É sobre o amor (talvez sobre fazer amor) que Aqualung recebe de uma mulher que o “ama” por caridade. É uma balada acústica. Tem uma versão alongada dela nos extras que foram remasterizados e digitalizados das fitas master por Steven Wilson (ele fez isso com algumas pérolas do Tull e do King Crimson e neste disco, foi no aniversário de 40 anos – Ian Anderson achou o resultado final brilhante). Ela tem mais de sete minutos de duração e partes mais elétricas com um percussão mais elaborada. São ambas um deleite e com uma orquestração belíssima. Antológica.

“Up To Me”: Agora o tema é o egoísmo e a maneira com que nós somos responsáveis pelas consequência de nossos próprios atos. As ideias meio “non sense” e metáforas ininteligíveis continuam. Tente entender a letra ouvindo a melodia que inicia bem cadenciada, levada pela flauta e violão, com pitadas eventuais de uma guitarra distorcida gritando. Percussão fantástica de uma música pungente e ácida!

“My God”: Início do lado 2 do vinil. Fala sobre a imposição da Igreja na sociedade inglesa, mesmo a Inglaterra sendo um Estado laico. Deus colocado numa jaula, que simboliza a religião. Mas ninguém está conectado com ele através da Igreja. Estão sim presos por algo imposto pela sociedade. É uma das minhas prediletas. Tem partes acústicas e mais pesadas, num prog rock de alta complexidade com piano e flauta harmonizados com a guitarra. Solo de flauta com contra ponto de um coral que lembra a música sacra. O violão clássico dá o tom no início. A ironia e polêmica levantada pela letra da canção é passada através da performance vocal de Anderson com muita vivacidade e pela harmonia do piano e violão. Quando o riff de guitarra entra, fica grandiosa. É linda e assustadora!

“Hymn 43”: Versa sobre a hipocrisia das pessoas más, que tentam se esconder e justificar seus atos e comportamento condenáveis através da religião. Um rock melódico com um dos solos de guitarra mais belos e tocantes de Martin. Uma das principais canções do álbum, que tem harmonias de tirar o chapéu. É um desbunde de canção. O piano é um caso à parte. Anderson urra contra a religião e a falsidade aqui nesta que é a minha canção do álbum.

“Slipstream”: Uma corrente de ar te leva embora a vida e com ela tudo que é material. Daí, percebe-se que depois da morte nada vai com você. São reflexões do ainda jovem Ian Anderson numa baladinha curta.

“Locomotive Breath”: A locomotiva é nossa vida em constante movimento. Dá a entender que Darwin (o mesmo da Teoria da Evolução) rouba a manivela que pararia supostamente a locomotiva. Um outro passageiro “vê” coisas ruins acontecendo durante a viagem e mesmo querendo, não consegue parar o trem. Ele tenta encontrar as respostas na 1° página da bíblia, mas nem isso soluciona seu problema. Talvez o “riff” mais espetacular de Martin Barre, por ser extremamente criativo. É pesado e “suingado” ao mesmo tempo. A música tem uma pitada jazzística e também mostra o peso de um “hardão” de impressionar. Um dos maiores sucessos do Tull de todos os tempos. Que som de guitarras! Que peso e ao mesmo tempo batidas quebradas e um baixo pulsante como uma locomotiva. É uma viagem impressionante!

“Wind Up”: É o fechamento. Última faixa do álbum. Anderson mostra o pensamento de um estudante que ouve de Deus que todos temos nosso livre arbítrio. Para “falarmos” com ele, será que só conseguimos aos domingos na Igreja? Melódica, linda, misteriosa. Questionadora através da letra que o som do violão, do piano e o vocal meio dissonante complementa. Tem um segundo momento com riff de guitarra e levada rock and roll empolgante. Além do solo irrepreensível de Barre, o baixo marca uma linda cadência com uma linha melódica deliciosa. No final, volta tudo ao início, com o piano e a levada suave, com leve aceleração e a música termina como o álbum, de uma forma calma e contemplativa.

Conhecer a trajetória de uma banda desse quilate e mergulhar na confecção de um álbum da importância de “Aqualung” nos ajuda a entender com o passar dos anos, porque ele se tornou um dos maiores discos de rock de todos os tempos. A cada audição termos um aprofundamento maior. Buscar a compreensão sobre o que foi a banda naquela fase, sobre o que fala o disco e perceber nessas sucessivas audições a beleza das canções, nos ajuda a desenvolver, ao longo do tempo, o entendimento sobre a música do disco e sobre uma banda tão eclética e rica como o Tull. Espero que você amante do rock, fã ou não do JT e que valoriza esse aprofundamento, possa agora ter mais prazer com essa imersão que sugiro. Esse é o propósito. Eu já estou indo ouvir de novo e depois emendarei com seu sucessor. “Thick As A Brick” (1972). Esse sim, genuinamente um álbum conceitual, que precisa também da atenção e capricho redobrado na audição, entendimento das letras e da sua progressividade nos arranjos. Mas isso é papo pro ano que vem, ok?

Por enquanto, delicie-se com o mendigo mais adorável do mundo e seu comportamento repugnante e politicamente incorreto. Na verdade, Aqualung pode ser um produto da nossa sociedade que não mudou quase nada em alguns aspectos nestes últimos 50 anos.

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