As canções do (auto) exílio

Para alguns, ainda é cedo para assimilar os efeitos do isolamento social, mas o recolhimento recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) já estimulou a criatividade alguns compositores brasileiros. Variando entre o romantismo, a nostalgia e a palavra firme de protesto e conscientização, eles vão escrevendo em suas partituras um novo capítulo da história da música brasileira. São as canções da quarentena, que emergem dos dias de introspecção e começam a ganhar as ruas, ou melhor, a internet, pois ainda não chegou o momento de darmos as mãos para cantar nem para dar aquele abraço saudoso. Ninguém larga a mão de ninguém, mas que seja à distância, com o cuidar de si e do próximo falando mais forte nessa hora.

Éerika Machado compôs a canção e concebeu o clipe durante a quanrentena em Lisboa - Foto: Divulgação
Érika compôs a canção e concebeu o clipe durante a quarentena  – Foto: Divulgação

Radicada em Lisboa, a cantora e compositora mineira Érika Machado lançou no início de abril o single “Mais uma Tola Canção”, criada num momento de recolhimento da artista. “Cinco acordes pra fazer / Mais uma tola canção / Se ninguém pode estender a mão…” são os primeiros versos da canção, escrita há menos de uma mês semanas e que recebeu um videoclipe com animações sobre desenhos feitos por ela mesma.

– Quis continuar a música, dando conselhos a mim própria – conta Érika, que em 31 de janeiro havia concluído a gravação do álbum “Sensacional!”, em parceria com a portuguesa Filipa Bastos. A turnê de lançamento, que estava em curso, acabou interrompida bruscamente com a proliferação do surto de Covid-19 na Europa.

Érika conta que não pensava em fazer nada novo por agora, mas trancada em casa…

– Acabo sempre fazendo um desenho ou uma música quando fico com ideia fixa em alguma coisa. Comecei a tocar uns acordes e fiquei pensando se fazia sentido fazer uma música, se eu nem sabia quando eu ia poder sair de casa, ou mesmo dar um abraço ou apertar a mão de alguém – resume a artista, que diz sempre fazer música em vez de escrever diários. Veja aqui o clipe de “Mais uma Tola Canção”:

 

Outro que se valeu da experiência do recolhimento, uma necessidade de proteção individual e coletiva, foi MV Bill, De dentro de seu apartamento em Jacarepaguá, próximo à comunidade da Cidade de Deus onde cresceu, o rapper já escreveu e gravou duas canções: “Quarentena” e “Isolamento”, ambas com versão em clipe, gravados na varanda de casa e no corredor do prédio seguindo todas as orientações de segurança.

– Nós não tivemos aqui no Brasil uma quarentena, mas um isolamento parcial de algumas pessoas. Parte do Brasil pode ficar em quarentena, mas outra parte precisa sair para trabalhar. E o pior de tudo é que algumas dessas pessoas que precisam sair às vezes não têm a consciência, não tem o conhecimento ou não tem os meios de se proteger. E quando elas voltam para os seus locais de moradia, geralmente locais de baixa renda ou favelas, elas vão para casas pequenas que abrigam famílias maiores em casa próximas umas das outras, o que é uma péssima combinação. E muitos desses lugares sequer possuem água potável. São lugares que se tornam fartos disseminadores da Covid”, alerta Bill, que destaca as redes de solidariedade que vêm sendo gestadas nesse momento e diz torcer para que essa mobilização “contamine” a sociedade além da quarentena. “É uma característica que precisa ser absorvida pela sociedade”, observa.

MV Bil gravou seus raps de quarentena e gravou em um intervalo de três dias - Foto: Divulgação
MV Bil gravou seus raps de quarentena e gravou em um intervalo de três dias – Foto: Divulgação

Acompanhando de perto a situação da pandemia, Bill potencializa sua verve crítica com uma poética que retrata o momento atual e não poupa críticas ao descaso de alguns governantes. “O mal contamina a cada esquina / Mais sério do que se imagina / Só faz a sua parte que eu faço a minha / Não pense que é só uma gripezinha / A guerra é grande pra uma mente tão pequena / O mundo tá parado e a gente tá de quarentena”, dispara Bill em “Quarentena”, o primeiro rap brasileiro a tratar do assunto. A canção foi lançada em 27 de março e já ultrapassou 500 mil visualizações no YouTube. O cantor e compositor anunciou também para maio o lançamento de uma versão remix para “Vírus”, escrita no ano passado. Profética?

Em “Isolamento”, lançada em 10 de abril, o rapper mostra a realidade daqueles para quem o isolamento social não é possível. “Pessoas que trabalham independente da sua crise / É preciso de um plano pra salvá-las / E não mirabolar um plano pra matá-las / Sei da importância de manter o país funcionando pra não quebrar totalmente a economia / Mas dá pra fazer isso sem deixar uma pilha de corpos amontoados dentro da periferia”, canta Bill na faixa composta seis dias antes, um sábado, gravada no dia seguinte e masterizada na segunda, mesmo dia em que o clipe foi gravado. Veja aqui o clipe de “Isolamento”:

Na mesma sintonia de urgência que o rapper carioca, o baiano Baco Exu do Blues também põe o dedo na ferida. Para ele, a possibilidade de fazer a quarentena é um privilégio social. Essa é a tônica de algumas canções de do EP “Não tem Bacanal na Quarentena”, lançado nas plataformas digitais no início de abril. Neste trabalho, Baco Exu retoma sua veia romântica (e sexual), mas não deixa o coronavírus e as mudanças comportamentais impostas à sociedade passarem em branco.

No novo álbum, Baco Exu do Blues retoma sua temática mas adiciona a probemática do isolamento - Foto: Divulgação
No novo álbum, Baco Exu do Blues retoma sua temática mas adiciona a probemática do isolamento – Foto: Divulgação

Gravado em estúdio doméstico em cinco dias, o EP funciona com uma válvula de escape para o rapper. Sua poética urbana flui em faixas como “Preso em Casa Cheio de Tesão” na qual reclama da abstinência sexual em tempos de isolamento social. “Quarentena está deixando todo mundo louco/ Só quero trocar ideia e te dar um pouco”, canta Lelle, que participa da faixa.

Em “Tudo vai dar certo”, Baco Exu do Blues faz duo contra cantora, 1LUM3. A letra sugere otimismo e a certeza de que a morte não é para agora. Tudo emoldurado por um sample de panelas batendo e gritos de “fora, Bolsonaro” na parte final. O presidente volta a ser citado na faixa de encerramento, “Amo Cardi B e Odeio Bozo”, que resgata áudio da rapper americana alertando sobre a ameaça do coronavírus, que viralizou nas redes sociais. “Trabalhadores na rua/ O papa é pop, quarentena é pop/ Cardi B fez mais que o presidente/ Porra, amo o hip-hop”, canta Bacu Exu que, no fim da faixa, colocou áudios de WhatsApp de pessoas no Complexo do Alemão, no Rio; na Cracolândia, em São Paulo; e de outras regiões periféricas retratam, com realismo, a contradição de uma sociedade que prega o isolamento, mas deixa os menos favorecidos em situação de vulnerabilidade.

Veja o clipe de “Amo Cardi B e Odeio Bozo”:

 

O cantor compositor Chico César - Foto: José de Holanda/Divulgação
Muito antes das lives, Chico César já usava as redes sociais para mostrar novos trabalhos aos fãs – Fotos: José de Holanda

E quando se fala em redes sociais impossível é não lembrar Chico César. Paraibano de Catolé da Rocha e radicado em São Paulo, o compositor de sucessos como “Mama África”, “À Primeira Vista” e “Estado de Poesia” (gravada pela diva Maria Bethânia), há tempos usa a internet para divulgar novos trabalhos tendo apenas o acompanhamento do violão, ou seja, exatamente como ele costuma criar. Antes da febre e do modismo das lives, era comum vê-lo em seu Instagram apresentando novas criações em primeira mão aos fãs.

De sua casa, o poeta acredita que os brasileiros sairão da pandemia tão divididos quanto entrarem nela.

– Tanto é que uns ficam em casa e outros não; uns entendem a gravidade do problema e outros acham que é só uma gripezinha; uns priorizam a vida e outros, a economia – disse.

Em casa, Chico divide seu tempo entre lives quase diárias, praticar pilates pela internet, tomar sol, alimentar os animais, cozinhar e limpar a casa. Mas ainda sobra tempo para compor.

– Tenho tido mais tempo livre para compor e, involuntariamente até, por não encontrar as pessoas, por não poder conversar pessoalmente com elas, sinto necessidade artística de abordar esses temas. Compondo, que é minha forma de conversar com o mundo.

E assim presenteou os fãs com sua produção mais recente. Entre seus cantos de quarentena estão “Nada” (“Amanhã não rola nada baby / Cada qual com seu rolê / Tomar banho, cozinhar, ler / Vê, tanta coisa pra fazer / E se a gente não fizer / Nem por isso vai morrer”) e “Se Essa Praga Morresse” (“Eu só queria que essa praga morresse / Que esse vírus infitete sumisse / Que acabasse logo o disse-me-disse”).

Rodrigo Maranhão se propôs compor uma canção por dia durante o isolamento - Foto: Divulgação
Rodrigo Maranhão se propôs compor uma canção por dia durante o isolamento – Foto: Divulgação

Fundador do Bangalafumenga, banda e bloco que arrasta multidões no carnaval carioca, Rodrigo Maranhão lançou-se ao desafio pessoal de criar uma canção nova por dia durante o isolamento. Para não pirar, conta, alterna os afazeres domésticos de limpar a e casa e ajudar a cuidar dos filhos com escrever músicas. E bem mais do que costumava fazer em condições normais, admite.

– Um compositor não precisa sair de casa para criar. Mas esta foi uma maneira que encontrei de me manter e sentir ativo, afinal precisamos trabalhar – conta o artista, que usa o perfil do Instagram para apresentar as canções inéditas e interagir com os fãs.

– As músicas desse projeto caseiro chegam ao mundo sem nome, e na inspiração da hora. Por isso peço aos que me seguem sugestões de nome – conta Maranhão, que já apresentou oito músicas nessa situação, algumas com parceiros de primeira viagem com o instrumentista Marcelo Caldi.

O lirismo tem dominado sua produção mais recente, talvez pela nostalgia que o isolamento social cisma em evocar. “Eu queria estar contigo / Eu não quero te deixar / No começo da tragédia tudo estava no lugar”, diz uma das letras.

Di Ferrero contraiu o Covid-19 - Foto: Divulgação
Di Ferrero contraiu o Covid-19 – Foto: Divulgação

Estar em isolamento social para proteger a si e aos outros do Covid-19 é uma coisa, mas encarar essa doença de frente é outra. O cantor e compositor Di Ferrero, vocalista do NX Zero, foi uma das primeiras pessoas públicas a testarem positivo para o Covid-19. Logo que o exame confirmou que o cantor estava com o vírus, ele ficou isolado em casa, em Porto Alegre.

– Fiquei um pouco rouco por causa do vírus e fiz essa música logo que eu consegui voltar a cantar. Nesse momento, comecei a tocar e a escrever sobre tudo o que está acontecendo, não só comigo, mas que está acontecendo com as pessoas em volta de mim, com o mundo – disse, referindo ao single “Vai Passar”, já disponível nas plataformas digitais.

Já curado do Covid-19, mas ainda em isolamento, o cantor também descreve como se preparou para gravar a nova canção.

– Acabei gravando com meu celular e um violão, dentro do armário cheio de roupas, para fazer uma acústica legal.

Di Ferrero conta que não tinha a intenção de lançar a música, pelo menos por enquanto, mas quando cantou durante uma live em seu Instagram, a resposta do público foi imediata e surgiram pedidos para ouvir de novo.

– Me senti bem pra caramba quando acabei a música e fiquei feliz com o resultado. Decidi lançá-la pra ser uma música para confortar as pessoas, como ela me confortou naquele momento – completa o cantor. Assista o clipe de “Vai Passar”:

 

Belotto tem uma visão otimista sobre o pós-pandemia - Foto: Divulgação
Belotto tem uma visão otimista sobre o pós-pandemia – Foto: Divulgação

Mesmo não sendo uma canção inédita, o hit “Sonífera Ilha”, dos Titãs, ganhou aura de hino desses dias de recolhimento. O clipe de sua versão acústica, lançado no fim de março, conta com a participação de vários artistas, como Fernanda Montenegro, Rita Lee e Lulu Santos, entre outros, e viralizou na internet, muito em função de que cada participação especial foi gravada de casa. De forma descontraída, os convidados dublam a canção de 1984, do álbum “Televisão”, o primeiro da banda.

– É uma música de quase 40 anos, que acabou virando um hino da quarentena e que está fazendo muito sentido nos dias atuais, pois reforça valores de união – afirma o guitarrista Toni Belotto, fundador dos Titãs, que ainda não compôs nada sob a influência do recolhimento imposto pela pandemia.

– Para mim, está tudo ainda muito recente para escrever nesse momento. Mas em breve todo mundo vai ser impactado de maneira intensa sobre tudo isso que está acontecendo. A gente tem que confiar muito na ciência e não nessas besteiras que certos doutrinadores tentam nos impingir. E apostar na solidariedade, que é muito importante neste momento, porque apesar de sermos indivíduos a gente não funciona sozinho; a gente funciona em sociedade – alerta.

Otimista, Belotto acredita que a raça humana possa sair melhor disso tudo.

– Acredito mesmo que a gente vai sair renovado dessa crise. Estamos aprendendo muita coisa dentro dessa angústia, dessa aflição, sobre a nossa condição humana e nossa relação com a natureza. Acho que boas lições vão dessa situação terrível, mas que vai passar logo – destaca.

Veja aqui o clipe de “Sonífera Ilha”:

 

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