Cazuza, 30 anos depois

Era um sábado de manhã. Meus pais estavam em casa, minha mãe fez uma cara estranha ao ouvir o rádio. Olhei, ela não disse nada. Meu pai ligou a TV e logo apareceram imagens de Cazuza. O poeta acabara de morrer, em decorrência da Aids- naquele tempo, uma sentença de morte e apedrejamento, desde os tempos em que os noticiários denominavam a síndrome com o abominável preconceito intitulado “câncer gay”.

Naquele mesmo sábado, o Rio de Janeiro esperava por um dos maiores shows de sua história: a Legião Urbana iria reunir dezenas de milhares de pessoas num show no Jockey Club, na Gávea. Imediatamente após a notícia da morte de Cazuza, ficou para muitos a dúvida se o show realmente aconteceria, dissipada quando Renato Russo adentrou o palco e a multidão veio abaixo – não sem pequenos entreveros entre o cantor e alguns espíritos de porco que lhe jogaram areia durante a apresentação. Na mesma cidade, a poucos quilômetros de distância, estavam os dois maiores poetas da música brasileira dos anos 1980, heróis de suas gerações, um morto, o outro ainda vivo, os dois definitivos.

Cazuza teve uma carreira que lembra um de seus grandes sucessos e até mesmo a própria biografia: “Vida louca, vida, vida breve”. Contudo, a letra certeira é de outro poeta: Bernardo Vilhena. E até nisso o artista foi genial, dando personalidade própria aos versos de outro letrista de grande porte. Contudo, o que não lhe faltou foi talento para versos, sacadas e até expressões que passaram a ser incorporadas a ele – “Exagerado”, por exemplo.

Cazuza com o Barão Vermelho - Foto: Reprodução
Cazuza com o Barão Vermelho – Foto: Reprodução

Sua trajetória artística não chegou a nove anos, mas eles pareceram quase dez anos a mil do que mil anos a dez – máxima de um de seus parceiros, Lobão. Do estouro com o Barão Vermelho até a performance arrebatadora no primeiro Rock in Rio, mais a saída da banda, a carreira solo e a mistura final de arte com martírio pela doença, Cazuza não deixou pedra sobre pedra. Ouvia de tudo e misturou gente da antiga com seu estilo de jovem dos anos 1980. Curtia bossa nova, samba tradicional e cantoras do rádio; a tudo isso, injetou uma pegada bluesy raras vezes vista no país. Romântico, devastador, exagerado como já dito, sacana, debochado, ele traduziu os anseios da juventude (“me avise quando for a hora”, “dizer segredos de liquidificador”, “o nosso amor a gente inventa pra se distrair”, “jogado a teus pés, exagerado”) de sua época e se tornou um hit, fazendo até propaganda de calças jeans. Gravou Cartola, dividiu o microfone com Celso Blues Boy e acertou o alvo em cheio com letras como as de “Brasil” (mostra a tua cara/ quem é que paga pra gente ficar assim) e a apoteótica “Burguesia” que trinta anos depois é um retrato fiel de parte da elite econômica brasileira. Cantava com um jeito de cara do Rio. Assista aqui o clipe original de “Exagerado”, produzido pela TV Globo e exibido originalmente no Fantástico

A redação certeira do mestre Ruy Castro em “Ela é carioca” (1998), livro de verbetes fantásticos sobre Ipanema, suas personagens e coisas, descreveu Cazuza como alguém que, se um dia chegasse à maturidade, poderia ser um letrista à altura dos maiores. Vale a pena divergir desta sentença: apesar de morrer muito jovem, aos 32 anos, Cazuza deixou letras que até hoje são cantadas à exaustão, consagradas como clássicos da música brasileira. Sua força pode ser medida pelo tempo: com menos de uma década de carreira e falecido há trinta anos, ele é cantado e decantado, regravado e louvado. Pela brevidade da vida, as loucuras e a produção, ainda que em menor escala, permitem que se possa fazer uma ponte entre o Exagerado e Noel Rosa sem nenhum demérito: cada um a seu estilo esculpiu seu tempo em versos.

O mesmo Cazuza que enternecia e fazia explodir nas noites brilhantes do Leblon (com notívagos menos loucos) foi o mesmo guerrilheiro que, do seu jeito, lutou com todas as forças pela vida – tomando todos os remédios, fazendo tratamentos experimentais e bebendo todas. Já em sua última fase, quando foi obrigado a parar de fazer shows, foi esquartejado na capa da revista Veja, numa covardia que só o tempo soube explicar. Deixou como resposta o belíssimo (e não valorizado) álbum duplo “Burguesia”, onde já muito doente e com a voz num fiapo, ele conseguiu ser avassalador em muitas gravações, numa despedida à altura do gigantesco artista que foi e é. Trinta anos depois, o poeta está vivo. Todos se lembram de Cazuza. Da Veja, nem tanto. Fiquem aqui com a arrebatadora performance de Cazuza e do Barão Vermelho no Rock in Rio I, em 1985:

É de se imaginar as crônicas musicais que o exagerado e genial Cazuza teria escrito durante todo esse tempo. Caetano Veloso o definiu como o maior poeta de sua geração. Fazia e faz todo sentido. Eu sou um dos garotos que, desde aquele sábado de manhã, procura a voz e os versos do ídolo por todos os lugares.

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