Chucho Valdés e Gonzalo Rubalcaba, afinidades muito além do tempo

Desde a década de 1940, Cuba foi a locação para um dos mais impressionantes casamentos musicais de que se tem notícia. Os ritmos latinos, a pulsação rítmica de sonoridades ancestrais da África e as harmonias e improvisos do jazz americano deram nome ao que hoje se costuma chamar de jazz afrocubano. Foi nesse ambiente de efervescência musical que nasceu Dionisio de Jesús Valdés Rodríguez, ou simplesmente Chucho Valdés. Filho do também músico Bebo Valdés, que dirigiu a lendária Tropicana, em Havana, o templo da salsa e cozinha onde todos esses ritmos se mesclaram, Chucho viria a se tornar um dos pianistas-ícone deste movimento. Seu talento é reverenciado em todo o globo terrestre e talvez só possa ter um paralelo na trajetória de Gonzalo Rubalcaba, pianista 21 anos mais novo que Chucho, mas que cresceu ouvindo o fundador do Irakere.

Detentora de 10 prêmios Grammy, a dupla sela um encontro que o destino levou anos para tecer e toca junta, pela primeira vez, no espetáculo “Trance”. A turnê teve início em 2017, passou pelo Brasil em setembro de 2018 e será encerrada com um grande concerto este ano em Havana. Ainda vai ganhar as telas de cinema com a realização de um documentário do cineasta italiano Niccólo Bruna. Veja trechos do filme aqui:

Chucho se sentava ao piano já com 3 anos

Chucho e Gonzalo têm os caminhos cruzados há mais tempo do que se possa imaginar. “Conheço o pai de Gonzalo há um bom tempo. Ou seja, conheço Gonzalo desde criança”, observa Chucho. Como se não bastassem as duas famílias terem tradição musical, ambos estudaram no mesmo conservatório. Uma história de família contada por Chucho nos dá a dimensão do que signi­fica a expressão “música vem de berço”. Certa vez, Bebo Valdés saiu para tocar em um salão de baile, mas se deu conta de que esquecera a partitura e foi em casa buscá-la. Deu de cara com o pequeno sentado ao piano tocando. Era Chucho, aos três anos! Surpreso, Bebo perguntou à mulher, Pilar, como aquilo era possível. “É que quando você toca, ele está sempre parado atrás de você”, respondeu a mãe.

Chucho tocou de ouvido até os cinco, depois lhe colocaram um professor. Aos nove, foi à escola de música. O curso de piano era de oito anos, mas, pelo conhecimento que já tinha, entrou direto no quarto ano. Ao terminar os estudos, Chucho foi ao conservatório estudar música clássica e história da música. Aos 14 anos, já era músico profi­ssional na orquestra de Bebo. “Meu pai montou uma orquestra para que eu aprendesse a escrever para ela. E para que eu aprendesse a tocar debaixo da batuta de um maestro e que melhor maestro que meu papá!”, recorda.

Na orquestra, soube mesclar a robustez rítmica dos instrumentos de percussão, a versatilidade dos naipes de metais e o lirismo de seu piano. Tornou-se o líder do Irakere, um laboratório musical que usou e abusou dos recursos em percussão, introduzindo tambores, chequerés, maracas, bongôs e congas. Essa overdose africana deixou Dizzie Gillespie impressionado. “Era  maio de 1977. Dizzie fez um cruzeiro pelas Antilhas e Caribe, passou por Cuba e se interessava pela cena musical local. Nos conhecemos e tocamos juntos. Ele se encantou com a banda e, ao voltar para Nova York, começou a falar muito de nós, que havia conhecido uma banda muito boa em Cuba. Inclusive para a gravadora Columbia que decidiu nos contratar”, recorda. Esta foi a senha para que Chucho iniciasse uma extraordinária carreira internacional.

Influência para João Donato

Chucho Valdés percorreu o mundo todo, tocou com gente de toda parte, inclusive brasileiros. “A minha admiração pelo Chucho começou pelo Bebo Valdés, o pai dele, quando ouvi em 1950 um disco chamado “Cubano”, com vários músicos tocando aquele tipo de jazz afrocubano e me apaixonei pelo estilo. Tempos depois, fui a Havana num festival de jazz, a convite do Chucho. Estive na casa dele, tocamos piano, nos divertimos muito. Depois o convidei para uma turnê no Brasil. É um grande músico e, acima de tudo, um grande amigo. Minha admiração por ele é enorme”, a­firma João Donato, o músico brasileiro que mais flertou com os ritmos latinos.

“Foi uma das turnês mais agradáveis de toda a minha vida. João Donato é um grande artista, um exímio pianista, um compositor incrível. E a oportunidade de excursionar com ele pelo Brasil, tocando músicas do Brasil, que estão entre as minhas favoritas, foi inesquecível. Donato e sua banda foram fantásticos comigo. Tenho ainda o desejo de voltar ao Brasil e fazer outra série de shows com ele”, devolve Chucho, com sua elegância peculiar, acrescentando que suas informações sobre música brasileira não se resumem ao samba e à Bossa Nova. “Tenho uma grande admiração pelo chorinho. Sua sonoridade me remete à muita coisa que fazemos em Cuba. Vejo muitas semelhanças.”

E o amor pela música brasileira é outro traço que une Chucho Valdés e Gonzalo Rubalcaba, que não se esquece da vez em que tocou com Tom Jobim. “Há 20 e poucos anos, participei de um concerto em tributo à sua obra. Dividir o piano com ele, sentir aquela atmosfera, foi um privilégio. Gal Costa também estava naquela apresentação”, destaca Gonzalo, que já tocou com Ivan Lins, Leny Andrade, João Bosco, Banda Mantiqueira e Ithamara Koorax, entre outros. “Gonzalo é um dos maiores músicos com quem tive a honra de trabalhar. Seu toque é de uma elegância natural fascinante, nos leva para uma outra dimensão de beleza”, disse a cantora, que contou com a participação do cubano na gravação de “Olha Maria” (Tom Jobim).

Gonzalo cresceu ouvindo Chucho

Gonzalo Rubalcaba, por sua vez, cresceu ouvindo Chucho Valdés e explodiu na cena mundial do jazz nos anos 1980 com o explosivo grupo Proyecto. No início dos anos 1990, suas performances em formato de trio com Charlie Haden e Paul Motian o consagraram como um dos principais pianistas de jazz da atualidade. É apontado pela crítica especializada como um pianista de precisão e toque suave, mas repleto de energia, e brilhante como um diamante ricamente lapidado na tradição do jazz afrocubano.

Mas ele fala de outras influências. “Há muitos estudos que indicam os três centros importantes da música das Américas e eles historicamente se relacionam entre si – Estados Unidos, Cuba e Brasil. Houve uma troca de ideias, um intercâmbio interessante entre essas três matrizes musicais. Compartilhamos memórias muito similares nos campos cultural, social, religioso. Eu gosto de incorporar um quarto centro musical do qual não parecemos ter muita consciência, que é a Argentina. Estamos falando do fi­nal do século XIX, começo do XX. Há em Cuba as habaneras e as ‘criollas’, que têm a mesma célula musical do tango!”, compara  Gonzalo.

A turnê do show “Trance”, a reunião de dois músicos desta magnitude não deixa de ser desafiante para o veteraníssimo Chucho, hoje com 76 anos, e de Gonzalo, de 55. O projeto de tocar juntos nasceu das longas noites que eles costumam passar na casa um do outro, quando suas concorridas agendas pro­fissionais permitem – ambos moram em Fort Lauderdale, na Flórida. “Este é um duo composto por dois pianistas que têm uma relação histórica dentro da tradição do piano cubano. Isso fez deste projeto algo muito especial. Surgiu muito naturalmente, organicamente. E não se trata de uma competição entre os pianistas, mas um desa­fio sobre como encontrar uma maneira de complementar um ao outro”, insiste Chucho. E Gonzalo vai além na defi­nição do projeto a quatro mãos. “Teria sido fácil escolher alguns standards e apenas sair e tocar, mas queríamos fazer algo especial. Estamos escrevendo músicas para dois pianos e recriando músicas que vão desde o popular e clássico repertório cubano a (Thelonious) Monk, passando pela inventiva música de Hermeto Paschoal. Entre as músicas do set list do concerto, estão “Joan” (Gonzalo Rubalcaba), “Mambo influenciado” (Chucho Valdés), “Rebuliço” (Hermeto Pascoal), “Gitanerias” (Ernesto Lecuona) e “Caravan” (Duke Ellington). Confira a apresentação da dupla no ano passado durante o Jarasum International Jazz Festival:

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