Fernanda Abreu, a dona da pista toda

Em 1990, o Brasil vivia o auge da lambada e da música sertaneja. Quem não mergulhava nessas águas sofria. A solução vinha de fora, com artistas que bebiam na fonte da dance music. Era o reinado de global de Madonna, escoltada por Dee Lite, Black Box, Erasure, Snap, Technotronic e Soul II Soul. O som desses artistas espalhava pelo dial e pistas de dança um pouco do que era a tendência nas pistas dos Estados Unidos e da Europa. Foi nesse contexto que nasceu uma diva brasileira, uma carioca-suingue-sangue-bom que mudaria o jeito do som pop dançante produzido no Brasil e influenciar gerações nas três décadas seguintes.

Essa revolução tinha some e sobrenome, voz, letras e atitude. E olha que o nome era grande: Fernanda Sampaio de Lacerda Abreu. E foi com as iniciais de seu sobrenome triplo que Fernanda Abreu fundou uma dinastia. Nada foi o mesmo nas pistas depois de “SLA Radical Dance Disco Club”, a estreia solo da ex-vocalista da Blitz.

“A minha carreira se mistura com o funk. Lá em 1989, com o DJ Marlboro, quando ele lançou o primeiro disco de funk carioca, eu também estava lançando meu primeiro disco. Faz parte da minha história e da minha trajetória. A origem do funk é a periferia e a favela. É assim até hoje. Atualmente, temos artistas que viraram mainstream, como a Anitta, que veio de Honório Gurgel, a Ludmilla, o Nego do Borel. Eu acho que o preconceito contra o funk é racial. É racismo mesmo. Não é um preconceito contra o ritmo ou contra a batida. Tem a ver com a origem do funk. As pessoas ficam incomodadas com as letras. Eu sempre disse que, para acabar com as letras proibidonas, é preciso mudar a realidade dessas pessoas. Na favela tem bala perdida todo dia, traficante, falta de educação, falta de cultura. Não tem saneamento básico. O funk é um estilo de música potente, poderoso e reflete essa realidade”, prega Fernanda.

A capa de 'Sla Radical dance Disco Club', de 1990
A capa de ‘Sla Radical Dance Disco Club’, de 1990

“SLA”, destaca Fernanda, era um álbum de autoafirmação feminina, já que conclamava a criação de um dance disco clube radical.  E as mudanças começavam pela capa, uma imagem da cantora em preto e branca e desfocada. Fernanda não era mais garota solar e praiana da Blitz. A “nova” Fernanda Abreu era da noite, vestida para brilhar na boate e armada de samples e batidas eletrônicas até os dentes. Hoje é fácil perceber que ela liderava uma revolução, uma revolução que passaria nas telinhas de TV, sobretudo via MTV.

O álbum apresentava ao público uma sonoridade pop com beats eletrônicos, algo até então inédito no país e por isso mesmo de um risco enorme para ser lançado por uma grande gravadora. Quando mostrou as primeiras demos do que viria a ser “SLA Radical Dance Disco Club” à EMI, Fernanda ouviu do então diretor Jorge Davidson: “Adorei, que coisa diferente. Mas, você sabe, não tem mercado no Brasil pra essa coisa dançante”. A resposta de Fernanda foi dada na lata: “Não tinha, vamos inaugurar! Acredita que vai dar certo”. O resto é história. Fernanda se tornou a nossa rainha da dance, do funk, do sample, da música black de baile e, principalmente, dos DJs.

E é por conta dessa simbiótica relação de Fernanda com os DJs que a cantora apresenta “Fernanda Abreu: 30 Anos de Baile”, um disco que reúne 15 DJs/produtores convidados a remixar a obra da artista. A lista de convidados é eclética e traduz o panorama da pista de dança hoje no Brasil, cobrindo estilos diversos, do funk ao trap, da house ao techno, do rap ao electro, representados por nomes da atual geração, como Vintage Culture, Gui Boratto, Bruno Be, Tropkillaz, Fancy Inc e DJs clássicos, que ajudaram a erguer as paredes dos bailes, como Corello DJ, Zé Pedro, Dennis DJ e Memê, este último encarregado de fazer a direção artística do álbum. Além do grande elenco de remixers, há também no disco as participações dos rappers Emicida e Projota.

No álbum, os convidados puderam repaginar para as pistas de dança, cada um à sua maneira, clássicos absolutos da discografia de Fernanda Abreu, como “Jorge da Capadócia” (que ganhou remix de Gui Boratto), “Kátia Flávia, A Godiva de Irajá” (em versão de Bruno Be), “Veneno da Lata” (com Tropkillaz), “Você pra Mim” (que ganhou feat de Projota, com remix de Dennis DJ), “Outro Sim” (repaginado por Ruxell, com vocais de Emicida).

“Durante todos esses anos de convivência, percebi com clareza que Fernanda sempre apostou fichas nos DJs, criando com eles um laço carinhoso de convivência, harmonia e respeito”, destaca Memê, que também assina, ao lado da cantora, a produção executiva do novo projeto. Memê, pseudônimo do produtor musical Marcello Mansur, é um nome de peso da house music, além de ser alquimista na arte de dosar a elementos eletrônicos na MPB vide seus trabalhos em conjunto com Lulu Santos, Gabriel O Pensador, Tim Maia, além da própria Fernanda e da diva colombiana Shakira.

É tanta história e serviços prestados à música dançante brasileira que só um disco de remixes não seria capaz de festejar tanto suingue. O lançamento de “30 Anos de Baile” acabou desdobrado num segundo com oito faixas em versões extendidas pensadas para bombar nas pistas.

Pioneira do pop eletrônico no Brasil, Fernanda Abreu declara sua eterna admiração aos DJs - Fotos: Alexandre Calladini
Pioneira do pop eletrônico no Brasil, Fernanda Abreu declara sua eterna admiração aos DJs – Fotos: Alexandre Calladini

“Desde o lançamento do meu primeiro disco, ‘SLA Radical Dance Disco Club’, em 1990, eu recebo o carinho e o entusiasmo dos DJs com meu som. E agora, 30 anos depois, é muito prazeroso para mim celebrar essa parceria lançando esse projeto, prestando uma homenagem a essa cena que amo tanto e fortalecendo ainda mais essa parceria nas pistas, nas festas e nos bailes”, afirma a cantora.

Fernanda Abreu tem não apenas o corpo flexível e atlético que os anos como bailarina a ajudaram a moldar, mas também sua alma e mente aspiram o novo. Por isso, seu próximo projeto já está em andamento. “Em 2022, vem aí ‘30 Anos de Baile por Elas’ (nome provisório), remixado só por mulheres DJs e produtoras musicais desse nosso Brasil”, avisa.

Ao longo de seus oito discos de estúdio, dois registros ao vivo (DVDs), 23 singles e quase 20 videoclipes, Fernanda foi à luta, criou seus próprios padrões misturando o que não se julgava ser misturável: uniu funk com batuque, usou samples e bateria eletrônica para fazer música pop, cantou seu amor pelos DJs citando a nata dos bailes, de Ademir Lemos a Monsieur Limá (em “Baile da Pesada”), trouxe a dança para o front, introduziu o funk carioca para a Zona Sul e, por fim, criou uma identidade brasileira de fazer dance music.

A inspiração pode até ter vindo de fora, de ícones como Madonna, Michael Jackson e Prince, mas Fernanda corre (ou melhor, dança) em raia própria. Deu brasilidade e rebeldia, temperando a música eletrônica com versos como o “Rio 40 graus, cidade maravilha, purgatório da beleza e do caos” ou “Dá gosto de ver a inteligência movendo um corpinho como esse”, tirada da música que virou sinônimo dela mesma, “Garota Sangue Bom”.

Se hoje não existem barreiras para produções eletrônicas com vocais em português e DJs brasileiros brilham nas maiores pistas do mundo é porque lá naquele longínquo 1990 Fernanda Abreu abria trilhas. E junto com ela estavam os fiéis DJs. Que o baile continue por mais 30 anos com a dona pista toda!

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