João Roberto Kelly, o rei das marchinhas

João Roberto Kelly

Não há quem pense nas marchinhas de carnaval sem lembrar de João Roberto Kelly. Símbolo da irreverência e alegria cariocas, este cantor e compositor nascido na Gamboa chega a mais um carnaval com a alegria de sempre. Último representante vivo do quarteto que fazia o Brasil cantar essas canções repletas de humor, passou a ser conhecido como o Rei das Marchinhas e, do lato de sua majestade, o criador de “Cabeleira do Zezé”, “Mulata Bossa Nova” e “Maria Sapatão”, entre outras, decreta que tem lugar para todos os gêneros nos dias de folia.

“Eu acho que o carnaval tem lugar para todo mundo. E acho que tudo tem que ser democrático, nada tem que ser imposto. Não sou sectário. Acho que o funk cabe no carnaval”, comenta o compositor que quarta-feira (19) apresenta um apanhado de sua vasta produção de marchinhas – incluindo a mais nova que pede o treinador português Jorge Jesus no comando da seleção brasileira -, mas sem deixar de lado clássicos de seus principais colegas do gênero como Lamartine Babo, João de Barro (Braguinha) e Haroldo Lobo, todos já falecidos.

“Vou tocar, evidentemente, as minhas marchinhas e também vou fazer um apanhado geral, quase que uma antologia das marchinhas de carnaval. Vai ter ‘Mamãe, eu quero’, ‘Teu cabelo não nega’, ‘Jardineira’, ‘Pastorinha’… É uma homenagem que eu faço aos compositores que fizeram esse gênero musical, que é tão espontâneo e por isso sempre cai na boca do povo”, avisa.

Kelly está certo ao dizer que as marchinhas clássicas são cantadas em blocos e bailes de carnaval, e adaptações delas viram até cantos de torcidas de futebol, mas o gênero padece de renovação. Será que os tempos do politicamente correto sepultaram o duplo sentido das marchinhas? “Não penso assim. Acho que o que está faltando à marchinha é uma divulgação maior. A grande verdade é que as marchas antigas ficaram. Em tudo que é bloco toca, em tudo que é baile toca. Não acho que seja um gênero que esteja se perdendo. Está faltando um pouco mais de divulgação para ele. Mas tem coisa boa saindo por aí. Neste carnaval, por exemplo, temos a ‘Cedae ou desce’, do Luís Filipe de Lima, um músico muito criativo que fala dessa crise da água em nossa cidade. E o carnaval é lugar para essa crítica, com a devida alegria”, comenta.

Abaixo, confira a marchinha “Alô, alô Gilmar” em que João Roberto Kelly satiriza as polêmicas envolvendo Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF):

Kelly admite que o carioca anda mais amargo. “Antigamente, as marchinhas eram satíricas, bem engraçadas, humoradas. Vejo que hoje em dia a coisa mudou um pouco: a sátira deu lugar a uma coisa um pouco mais pesada. Isso não só na marchinha, de modo geral. Eu gosto da coisa leve, da brincadeira carioca como sempre foi. Não gosto do palavrão, não tenho nada contra nada, mas sou contra a licenciosidade – comenta para, em seguida, completar com bom humor. – Na ‘Cabeleira do Zezé’, por exemplo, introduziram um coro de ‘bicha!’ no meio do refrão. Essa bicha não é minha!! Eu adoro as bichas”, diverte-se.

Ainda sobre a “invasão” de outros ritmos no carnaval, Kelly mostra a benevolência de uma rei alegre, mas tudo tem seus limites: “Você sabe que a grande tônica do carnaval são os sambas e as marchinhas. Mas acho que esse carnaval de funk é bom. Só não gosto quando fazem carnaval com música estrangeira. Isso daí eu sou radicalmente contra. Desculpa a expressão, mas acho uma frescura. Temos tanta coisa nossa bonita. Você vai fazer um bloco cantando “Yesterday”? Não dá…”

Ao ser informado de que o bloco Sargento Pimenta, que toca Beatles, mistura o repertório da banda com ritmos como maracatu, frevo e até marchinha, o rei abre um sorriso e exclama: “Ah, estava falando sem nunca ter ouvido, mas, pelo que você diz, abrasileiraram a coisa!”

Muita história pra contar

A maior fama de João Roberto Kelly pode mesmo até ser as marchinhas carnavalescas, mas, com seu piano, produziu muito mais que isso. Seu primeiro reconhecimento de público e crítica veio na voz de uma jovem e promissora cantora, que fazia sua estreia fonográfica em 1961. Era Elza Soares. “Meu primeiro sucesso é o primeiro da Elza também: ‘Boato’”, lembra ele.

A canção marcou a trajetória da cantora, que a regravou em vários álbuns. Apesar de naquela época existir uma certa rixa de cantoras não gravarem músicas que se tornaram sucesso com outra artista, Elizeth Cardoso regravou “Boato”, assim como outras composições de Kelly, como “Esmola” e “Se vale a pena”.

Elis Regina também gravou uma canção de João Roberto Kelly em seu primeiro álbum. “Era ‘Dor de cotovelo’, que está em seu primeiro long play – lembra o compositor com orgulho.

Mas a canção que mais lhe agrada é “Rancho da Praça Onze”, parceria com Chico Anysio e eternizada na voz de Dalva de Oliveira. Uma ode aos antigos carnavais. “Esta é a Praça Onze tão querida/ Do carnaval a própria vida/ Tudo é sempre carnaval/ Vamos ver desta Praça a poesia/ E sempre em tom de alegria / Fazê-la internacional”, cantava Dalva em seus primeiros versos.

Os estudos de piano começaram cedo em casa. Mas o grande aprendizado para compor rápido (e bem) foi a televisão, que dava seus primeiros passos no Brasil. “Quando comecei, foi fazendo trilhas de televisão. Fiz trilhas e mais trilhas”, lembra.

A primeira trilha, no entanto, foi para um espetáculo do teatro de revista, “Sputnik”, de 1957, de Leon Eliachar e Geysa Boscoli. A peça estreou no Teatro Jardel, o primeiro teatro de bolso fundado em Copacabana, por Geysa, e que abrigou inúmeros espetáculos de revista.

Estreia na TV

Das revistas para a TV foi um pulo. Em 1963, Jo]ap Roberto Kelly foi contratado pela TV Excelsior para fazer aberturas de programas. No ano seguinte, Chico Anysio e Carlos Manga o convidariam para musicar os quadros humorísticos do programa “Times Square”. Depois viria “My fair show”, com direção de Carlos Manga e Maurício Sherman.

O gosto pelas marchinhas carnavalescas, que repetiam as crônicas de costumes das revistas em forma sintética e de fácil apelo popular, fizeram o jovem compositor aventurar-se no gênero. Composta para o carnaval de 1963, “Cabeleira do Zezé” tornou-se sucesso instantâneo num compacto de Jorge Goulart. Ele ainda daria voz a outra marcha de Kelly: “Joga a chave, meu amor”, também sucesso no carnaval. “Os grandes compositores de marchinhas eram Lamartine Babo, Braguinha e Haroldo Lobo. Eles tiveram a generosidade de me incluir no time e hoje sou o último representante dessa turma. É uma honra estar nesse quarteto”, orgulha-se.

Já na TV Rio, em 1965, Kelly foi compor as trilhas do programa “Praça Onze”, com textos de Meira Guimarães e J. Rui.

Com personalidade carismática e uma carioquice explícita, passou, a pedido de Walter Clark, a produzir e apresentar os programas “Noites Cariocas” e “Musikelly”.

Em 1966, apresentou no Canal 5 de São Paulo o programa “Alegro” e “Tonelux”, na TV Globo. Na década de 1970, voltou para a TV Rio e apresentou o programa “Rio dá samba”, que ficou 12 anos no ar, trazendo todas as novidades do mundo do samba. Eram divertidos os programas que levavam ao estúdio da emissora intérpretes, passistas e ritmistas de todas as escolas de samba cariocas e, obviamente, tudo acabava num grande baile, com sambas enredos e marchinhas.

Tricolor apaixonado, João Roberto Kelly nutre amor idêntico por uma instituição do carnaval carioca, o Cordão do Bola Preta, para o qual compôs, em 2018, a marcha “Cem anos de Bola”, gravada por Neguinho da Beija-Flor. “O Fluminense não está lá essas coisas, mas minha outra paixão, o Bola Preta, sempre me traz alegrias”, diverte-se Kelly, que não perde a oportunidade de expressar o seu amor pelo maior bloco da cidade.

Serviço

JOÃO ROBERTO KELLY E SUAS MARCHINHAS

Teatro Rival Refit (Rua Álvaro Alvim, 33 – Cinelândia);

19/2, às 19h30;

Ingressos: R$ 60 e R$ 30.

 

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