Laurindo Almeida, um gênio forjado pela mobilidade

Por Lipe Portinho*
Especial para o Na Caixa de CD

 

Bach, uma trajetória musical impulsionada pelo desejo de se mover- Foto: Reprodução

Johann Sebastian Bach (1685-1750) perdeu a mãe em 1694 e o pai no ano seguinte. Sozinho, triste e com apenas 9 anos de idade caminhou 45 km, durante nove horas, para encontrar o irmão Johann Christoph, organista da igreja de Ohrdruf. Bach, que foi em busca de família, acabou encontrando na figura do irmão um profissional que foi um excelente tutor no processo final de sua formação musical, e compreendeu que precisaria  ir atrás de sua sobrevivência profissional, não importasse a distância. Em 1705, caminhou 400 km somente para conhecer e ter aulas com seu ídolo musical, o organista Dietrich Buxtehude. A mobilidade traz muitas vezes transformação, e a vida de J.S.Bach foi literalmente de mudanças: foi de Eisenach para Ohrdruf,  Lüneburg, Weimar, Arnstadt, Mühlhausen, Weimar novamente, Cöthen e por fim Leipzig, onde teve trabalhos variados inclusive como diretor musical do coral da cidade e onde faleceu. A obra de Bach saiu de evidência por um século e só foi redescoberta no final do Romantismo.

Nosso outro personagem, Laurindo José de Araújo Almeida Nóbrega Neto (1917- 1995), também foi um nômade em outros tempos e proporções. Passou a infância em Prainha (hoje Miracatu), a 140 quilômetros da capital paulista, assim como Bach perdeu o pai prematuramente e, destemido, foi para Santos e em seguida para São Paulo. Na capital, sua coragem sofreu um pequeno baque, pois com apenas 15 anos de idade foi recrutado e enviado para o front paulista na Revolução de 1932. Apavorou-se. Inventou uma doença para fugir dos horrores da guerra e foi internado num hospital de campanha. Lá o destino o colocou ao lado da pessoa certa. Conheceu um enfermeiro boa praça que veio a ser seu parceiro musical por boa parte da vida: Aníbal Augusto Sardinha, o Garotinho do Banjo, ou como foi imortalizado, Garoto, mas esse é personagem para outro artigo.

Laurindo nos primeiros anos de carreira no Rio - Foto: Reprodução
Laurindo nos primeiros anos de carreira no Rio – Foto: Reprodução

Voltando a Laurindo Almeida… o músico saiu de São Paulo e veio para o Rio com o violão debaixo do braço, alguns tostões no bolso e a certeza de que o amigo César Ladeira, locutor da Rádio Mayrink Veiga, o ajudaria. As rádios eram um espaço de grande destaque para músicos e artistas, e os cassinos da capital o ponto de encontro de toda efervescência cultural e social do Brasil. Laurindo achou seu lugar nos cassinos que, entre 1934 e 1946, foram a mola propulsora da cultura nacional.

O Rio de Janeiro era uma festa! Artistas consagrados das rádios como Carmen Miranda, Silvio Caldas e Grande Otelo se apresentavam para famosos, milionários e jet setters do mundo todo que vinham em busca de glamour e diversão nas casas de jogos. A troca cultural era intensa. Artistas vinham e alguns iam. Luxuosos iates ancoravam em nossos piers, o Cassino da Urca oferecia um serviço de barcos para transportar pessoas para o Cassino de Icaraí, em Niterói. O cassino do Copacabana Palace tinha uma infraestrutura melhor que a de muitos cassinos europeus e detinha o título de melhor casa de espetáculos da América do Sul. O Cassino Atlântico no Posto 6 também atraia público e entre roletas, champagne e muita música boa, milhares de pessoas eram empregadas pela indústria dos jogos de azar até que o presidente ultraconservador, general Dutra, com o Decreto-Lei nº 9.215, de 30 de abril de 1946, aboliu o jogo no Brasil.

Dizem que a ideia partiu da primeira dama, Dona Santinha, como era chamada Carmela Dutra, devota fervorosa da igreja católica. O fato é que, da noite para o dia, milhares de trabalhadores ficaram desempregados com uma única canetada, numa desastrosa intervenção estatal que acarretou mudanças severas no mercado da música. A indústria do jogo foi escondida debaixo do tapete gerando um submundo de contravenções de jogos ilegais, e os artistas brasileiros tiveram mais uma vez que se reinventar. O balde de água fria também atingiu Laurindo Almeida. Sem espaço e sem renda, fez a trouxa e partiu para os EUA. Lá tornou-se um dos maiores artistas de Hollywood, mas um nome esquecido no Brasil.

Assistam a essa memorável releitura de Laurindo e do Modern Jazz Quartet para o “Samba de Uma Nota Só” (Tom Jobim / Newton Mendonça) em especial para a TV americana. Laurindo teve o acompanhamentos dos seguintes instrumentistas: Milt Jackson (vibrafone), John Lewis (piano), Conie Kay (bateria) e Percy Heath (contrabaixo).

Barney Kessel, o homem que influenciou a revoução harmônica que culminou na Bossa Nova, aprendeu chorinhos com Laurindo Almeida - Foto: Reprodução
Barney Kessel, o homem que influenciou a revolução harmônica que culminou na Bossa Nova, aprendeu chorinhos com Laurindo Almeida – Foto: Reprodução

Na terra do Tio Sam compôs e gravou tocando guitarra, violão, alaúde, bandolim e banjo para filmes e séries como “Além da Imaginação”, “Bonanza”, “Os Dez Mandamentos” (versão de 1956), “O Poderoso Chefão” e “Os Imperdoáveis”. Foi solista, gravou centenas de discos clássicos e de jazz, foi indicado a 11  Grammys dos quais ganhou cinco, além de ter sido indicado a um Oscar pela composição e execução da trilha sonora do filme “The Magic Pear Tree” em 1969. De quebra, foi professor do guitarrista Barney Kessel, que em 1955 acompanhou a cantora Julie London no LP “Julie is Her Name”. De acordo com meu querido amigo Roberto Menescal esse LP “colocou 500 acordes novos na música brasileira em uma única tarde” quando Menescal, Baden Powell, Carlinhos Lyra (que foi aluno de Garoto) e Durval Ferreira se reuniram para ouvir e tirar aquelas harmonias fantásticas que acabaram fazendo o cenário musical da Bossa Nova.

O musicólogo Henrique Cazes contou-me certa vez que, nos anos 70, Kessel veio tocar no Brasil, e num domingo de folga, a cantora Miúcha o convidou para uma reunião em sua casa, onde ele ligou a guitarra e surpreendeu a todos tocando um monte de chorinhos e ainda arrematou:

– Foi Laurindo que me ensinou!

Laurindo Almeida, um músico de excelência que não teve medo de buscar novos caminhos e mercados, influenciou muito mais gente do que podemos imaginar. Tenho certeza de que você leitor, no momento, está ouvindo aquele solo “tarararurirará” da abertura de “Além da Imaginação”, estupefato por nunca ter sabido que tinha uma mão brasileira nesse arranjo.

*Mestre pela UFRJ, compositor, maestro, contrabaixista, diretor de cinema e produtor de televisão

2 thoughts on “Laurindo Almeida, um gênio forjado pela mobilidade

  1. Rara e belíssima apresentação de Laurindo de Almeida acompanhado pelo extraodinário Modern Jazz Quartet, com Milt Jackson (vibrafone), John Lewys (piano), Conie Kay (bateria) e Percy Heath (contrabaixo). Pena que os americanos não tenham assimilado a batida tão nossa!

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