Qual a música de sua vida?

Por Sophia Magalhães*
Especial para Na Caixa de CD

 

Ninguém nasce num domingo de carnaval impunemente. Não dava para ser diferente, a música sempre fez parte da minha vida. Fui embalada ouvindo marchinhas que marcaram época, acho até que já as ouvia antes de nascer, no ventre materno.  Sassassaricando/ todo mundo leva a vida no arame… Eu sou o pirata da perna de pau/ do olho de vidro/ da cara de mau… Você pensa que cachaça é água? Cachaça não é água não… 

Minha mãe era uma criatura musical. Rádio ligado o dia todo enquanto exercia suas tarefas domésticas como “rainha do lar”, título honorífico que as revistas femininas e jornais da época conferiam àquelas que abriam mão de uma vida profissional para cuidar do marido e dos filhos. Conheci Cauby, Ângela Maria, Elizeth, Maysa, Agostinho dos Santos, Dolores Duran ainda bem pequena, pelas mãos e cantares de minha mãe.  

Cantarolava os sucessos musicais, sem entender o sentido das letras, trocando palavras, mas tinha ritmo e imprimia uma tremenda carga dramática para entoar “O Meu Mundo Caiu” ou “Conceição” que ninguém nunca soube se desceu o morro para subir ou cair na vida. Em contrapartida, me comovia com a beleza melódica de “Carinhoso”, os males de amor e a ternura antiga de Elizeth, a primeira rosa que Dolores dedicava ao seu amor e os acordes de “Chega de Saudade”, pioneira do bossanovismo, magistralmente interpretada por Agostinho dos Santos, que nos deixou precocemente, vítima de um  desastre aéreo.  

 Na pré-adolescência, chegava da escola e ligava a Rádio Tamoio para ouvir “Passarela do Sucesso.”  Cada música possuía uma cor e eram apresentadas vinte por dia. Quando se esgotavam as cores básicas – primárias e secundárias – a paleta de tons se diversificava indo do âmbar ao ciclâmen, cujo tom nunca soube definir com exatidão.  Os ouvintes tinham então meia hora para votar nas músicas prediletas que eram reapresentadas em ordem decrescente da preferência do público. O telefone lá em casa ficava ocupado diariamente no meio da tarde para desespero da minha avó enquanto eu votava sem parar nas melodias que desejava alçar ao pódio musical. Bossa nova, boleros, canções italianas, sambas-protesto iam moldando meu gosto musical, numa mistura eclética, caótica e, por que não dizer, limítrofe àquilo que meus amigos mais descolados conceituavam como “cafona”. 

Na escola, para me enturmar, declarava minha predileção pelos Beatles e Rolling Stones a ponto de aceitar fazer parte de uma banda “cover” na qual encarnava George, talvez o menos midiático do quarteto de Liverpool. Não convencia mesmo e, constrangida, acabei por deixar o grupo preferindo matar as aulas de educação física para cantarolar as melodias que realmente apreciava, sempre acompanhada ao piano por outra viciada nesse gênero que, não por acaso, tornou-se minha “best friend”. 

Na juventude entrei de vez pra turma dos engajados. Só Chico, Caetano e Gil na veia. E Elis, sempre ela, musa eterna a quem dedico até hoje a mais profunda devoção.  Mas, volta e meia, sofria uma recaída: os fatídicos boleros, dos quais Elis me redimia tanto em versões como “Me Vuelves Loca”, sua última gravação em estúdio, ou nas composições cadenciadas da incrível dupla Bosco & Blanc. 

Um dos últimos textos do colega Carlos Monteiro em homenagem ao cantor e compositor Armando Mazanero, morto recentemente, me fez mergulhar de vez nesse passado que muitas vezes reneguei. Passei os últimos dias ouvindo “Contigo Aprendi”, “Somos Novios”, “Pero te Extraño”, imortalizados na voz do talentoso bolerista mexicano. Tudo isso para confessar que a trilha sonora da minha vida, depois do Sassaricando que ouvia minha mãe cantar ao lado do berço, é mesmo um bolero. 

Declaro publicamente minha preferência pela música que iluminou um momento especial da minha vida: “Contigo em la Distancia”, que costumava cantar nas bodeguitas de Cuba depois de três doses de mojito para homenagear o compositor local Cesar Portillo de La Luz. A paixão era tanta que, ao retornar ao Brasil, me matriculei no estúdio do Jaime Aroxa onde aprendi a dançar boleros em seus principais passos – dois pra lá dois pra cá, frente/trás, lado a lado, virado, giro, cruzado, leque… Devo confessar que um bom bolero me tira do sério!

Para finalizar, deixo aos meus fiéis e seletos leitores parte da letra dessa música que compõe a trilha sonora de uma vida assumidamente “kitsch” 

“No hay bella melodía / En que no surjas tú/ Ni yo quiero escucharla/ Si no la escuchas tú / Es que te hás convertido/ En parte de mi alma/ Ya nada me consuela/ Si no estás tú también/ Mas allá de tus lábios / Del sol y las estrellas/ Contigo en la distancia/ Amado mio, estoy.” 

 

*Professora, socialista de carteirinha e amante de boleros.

 

      

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