Zé Kéti, a voz do morro, do asfalto e do povo

Zé Kéti

Por Maninho Pacheco

José Flores de Jesus morreu em 1999, aos 78 anos, vítima de parada cardíaca, no hospital da Venerável Ordem Terceira da Penitência, Tijuca. Neste dia 16 de setembro comemoraria seu centenário. Vivo fosse. Mas a vida nos é sempre teimosa e insiste em partir, apesar de nossa contrariedade. A saúde de Zé Kéti já estava seriamente abalada, meses antes de sua morte.

Morava com a filha Geisa, em um condomínio popular em Inhaúma, bairro onde nascera, zona norte do Rio. Havia voltado para a cidade após passar dez anos em São Paulo. Voltou por insistência dos filhos – teve sete. “Ele não podia mais morar sozinho lá”, disse Geisa, à época de sua morte, em entrevista à Folha de S. Paulo.

Hipertenso, com sinais de arteriosclerose, passava o dia vendo televisão. Pouco saía de casa. Exceção feita quando recebia alguma homenagem. Cada vez mais escassa, então. A última foi dois meses antes de sua morte. Em setembro daquele anos, ele e o compositor Guilherme de Brito foram as estrelas de uma roda de samba organizada pelo clube Lagoinha, em Santa Teresa (centro do Rio). Um ano antes, ganharia o Prêmio Shell de música.

Semanas antes de morrer estava especialmente feliz. Seria homenageado no Carnaval do ano seguinte pela escola de samba Boêmios de Inhaúma, do terceiro grupo carioca. A escola levava para o asfalto o enredo “Os bambas de Inhaúma”, referência a ele e a Pixinguinha, outro ilustre morador do bairro, de quem Zé Kéti foi grande amigo.

Pouco mais de 150 pessoas compareceram ao seu velório, na capela Santa de Cássia, no cemitério de Inhaúma. O caixão fora coberto com a bandeira azul e branca da Portela. Zé Kéti foi enterrado ao som de sua composição “A Voz do Morro”. Mais conhecida como “Eu sou o samba”.

Zé Kéti compôs “A Voz do Morro” em 1947 e passou os oito anos seguintes procurando um intérprete que aceitasse gravá-la. O que só aconteceria em 1955 – sob a voz de Jorge Goulart e arranjo de Radamés Gnattali -, quando Zé Kéti cede a Nelson Pereira dos Santos os direitos de execução do samba para integrar a trilha do neorrealista e pré-cinemanovista “Rio, 40 graus”. Ouça aqui a gravação original com Jorge Goulart:

E aqui há uma inflexão importante que marca bem a abrangência e importância de Zé Kéti para a cultura brasileira. “Rio 40 graus” fez mais do que lançar “A voz do morro” nacionalmente. O filme marca a profunda amizade entre o cineasta e o sambista, que se aprofundaria para sempre. Mas, mais do que isso, aponta para a pouco discutida importância de Ze para a consolidação das bases musicais do Cinema Novo.

Cena de 'Rio Zona Norte', de Nelson Pereira dos Santos, com trilha sonora assinada por Zé Kéti - Foto: Reprodução
Cena de ‘Rio Zona Norte’, de Nelson Pereira dos Santos, com trilha sonora assinada por Zé Kéti – Foto: Reprodução

Em “Rio 40 graus”, Zé Kéti compõe a trilha, atua e trabalha como segundo assistente de câmera. Voltaria a assinar parte da trilha sonora de “Rio Zona Norte”, o filme seguinte de Nelson, de 1957. Aliás, uma declarada biografia da trajetória de Zé. Em 1965, Zé Kéti teve músicas incluídas na trilha sonora do filme “A Falecida”, de Leon Hirszman. No ano seguinte, fez parte da trilha sonora do filme “A Grande Cidade”, de Cacá Diegues.

Todos esses movimentos tornam Zé Kéti um artista com livre – e prestigiado – trânsito entre a velha guarda do samba, as favelas e o subúrbio do Rio com a dita alta cultura e intelectualidade dos artistas burgueses da Zona Sul. De uma certa forma, “A voz do morro” reabilita o samba-raiz eclipsado pelo boom do samba-canção, nas sofisticadas boates dos bairros nobres do Rio, e a insurgente Bossa Nova, que ensaiava seus primeiros acordes.

“A Voz do Morro” daria nome à formação de um grupo estelar de sambistas criado por Hermínio Bello de Carvalho e integrado por Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Nelson Sargento, Anescarzinho do Salgueiro, Jair do Cavaquinho, Zé Cruz e Oscar Bigode. Além de Zé Kéti, claro. Estávamos em 1964. E aquele ano seria central na trajetória de Zé. É quando grava o álbum “Roda de Samba”, com o Voz do Morro, e passa a transitar com desenvoltura nas atividades musicais promovidas no Zicartola. E, aí, cabe um parêntesis.

Zicartola foi nome fantasia da razão social Refeição Caseira Ltda. Seria de um indesculpável reducionismo chamar aquele espaço de bar. Mas foi daquela forma que veio ao mundo, no número 33 da Rua da Carioca, centro do Rio, erguido por Cartola e sua mulher Zica (o casal morava no terceiro pavimento do endereço). Em seus curtos 20 meses de vida, o Zicartola marcou intensamente a cultura do Rio e a do país em cada minuto de sua breve existência.

Zé kéti
Odete Lara (esquerda), Dorival Caymmi (sentado), Zé Kéti, (gravata), Tom Jobim (ao violão) e Cartola (camisa listrada) no bar e restaurante Zicartola – Foto Reprodução

O Zicartola nasce com a atividade-fim de servir refeições temperadas pelas mãos mágicas de Dona Zica. Logo, os dotes culinários da primeira-dama do samba passam a atrair sambistas da velha guarda que não tinham mais espaços no novo universo místico e noturno das boates e nas emergentes rodadas de violão da juventude dourada de Ipanema e Copacabana. Zé Kéti foi um dos primeiros e principais frequentadores do espaço. E não apenas para comer e beber. Também divulgava a casa a diversas rádios e jornais, além de ter a ideia de aproveitar os produtivos encontros comensais de sambistas das mais diversas matizes para realizar noitadas de samba.

Além de sambistas esquecidos, marginais e desconhecidos, o Zicartola passa a atrair, também, toda a sorte de artistas, intelectuais e burgueses marxistamente deslumbrados com a descoberta dessa abstração chamada povo e sua derivação, cultura popular. Entre esses universitários de classe média estava o então diretor musical do CPC da UNE, Carlos Lyra, além de outros mediadores culturais como Sérgio Cabral e Hermínio Bello de Carvalho. A aproximação de Lyra com Zé Kéti (com quem logo compôs “Samba da Legalidade”) foi central para a conexão entre os bambas do samba e o sofisticado mainstream musical carioca.

A partir do Zicartola, e por indicação de Zé Kéti, Lyra seria apresentado a monstros sagrados do samba, como Nelson Cavaquinho, Carlos Cachaça, Elton Medeiros e Paulinho da Viola. Essa nova legião explosiva e sofisticadamente criativa em suas múltiplas variações (partido alto, samba enredo, marcha-rancho, sambalanço etc.) musicais passaria a ser convidada para participar de atividades culturais, principalmente dos shows universitários patrocinados por entidades estudantis, aprofundando a busca de uma síntese entre a Bossa Nova nacionalista e a tradição do samba.

Zé Kéti e Nara Leão no show Opinião, marco na contestação artística ao golpe militar de 1964 - Foto: Reprodução
Zé Kéti e Nara Leão no show Opinião, marco na contestação artística ao golpe militar de 1964 – Foto: Reprodução

Nas mesas do Zicartola, Lyra apresenta Zé Kéti a Nara Leão, que imediatamente grava um de seus sambas, “Diz que Fui Por Aí”, em seu primeiro disco solo. Em 1964, ao lado de Nara e João do Vale, Zé Kéti apresenta-se no Show Opinião, um dos primeiros gritos artísticos de protesto contra o regime militar. O show lançou os sucessos “O Favelado”, “Nega Dina” e “Opinião”, de Zé. No ano seguinte, Nara grava “Acender as Velas” (no mesmo ano o samba seria gravado, também, por Elis). Zé Kéti, então, já era um músico consagrado. O resto é história, como reza o clichê.

Seria injusto afirmar que Ze Keti foi esquecido dos anos 1970 em diante. Nas três décadas seguintes ao auge do seu sucesso – não esquecer “Máscara Negra”, em parceria com Pereira Matos, para o Carnaval de 1967 -, foi celebrado, lembrado e resgatado por inúmeras vezes, ocasiões diversas, celebrações e comemorações mis. Foi gravada pelos mais diversos artistas como Dalva de Oliveira e Elza Soares, entre outros.

No início dos anos 1970, separou-se da segunda mulher – com a primeira teve cinco filhos – e foi para São Paulo. Os parcos direitos autorais que recebia jamais foram proporcionais à massiva execução de suas canções – em qualquer país que minimamente respeite seus músicos pátrios, Zé Kéti teria sido milionário apenas com a execução de “Máscara Negra”. O legado de mais de 200 músicas não o sustentava – isso explica parte de sua militância na defesa dos direitos autorais dos compositores. Segundo registra o Dicionário Cravo Alvin da MPB, Zé Kéti se virou como pode, em São Paulo. Trabalhou na construção civil, foi propagandista de medicamentos e servidor públicos. Mas os proventos eram poucos e parcos.

De volta ao Rio, em 1994, continuou cantando e compondo. Três meses antes de sua morte, morre a ex-mulher. Na sequência, o querido amigo Carlos Cachaça. Zé Kéti mergulha no bravio mar da depressão. Semanas antes de morrer vinha questionando a morte. “Por que ela existe?”, perguntava, segundo a filha Geisa.

Zé Kéti foi um genial e admirável cronista das pessoas simples e trabalhadoras de um Rio que não existe mais. A viúva Neli Maria afirmava que o mestre não tinha dimensão do que representou para a música brasileira e sofreu muitas críticas. Em uma entrevista, confessou: “O pessoal do morro, principalmente, dizia que ele tinha embranquecido e que estava tirando chapéu para branco da Zona Sul, e ele não achava isso. Ele fez o que sempre soube fazer de melhor: canções que falam de amor, boemia, cotidiano de pessoas empobrecidas e desigualdades sociais”.

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Zé Kéti, 100 anos

E ouça este episódio do podcast Faixa a Faixa em que o cantor e compositor Zé Renato comenta as faixas de “Natural do Rio de Janeiro”, belo álbum de tributo a Zé Kéti e que acaba de completar 25 anos:

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