Ainda (mais) sobre João Gilberto

João Gilberto nos deixou sábado e no domingo o nosso colaborador Paulo Roberto Andel deixou aqui no Na Caixa de CD um magnífico relato de sua relação com este gênio e sua tentativa frustrada de entrevistá-lo. Centenas de jornalistas tentaram e raríssimos conseguiram falar com ele ao telefone. João não atendia suas ligações mas gostava de ligar para alguns deles para papear, jogar uma conversa fora. Mas de conversa em conversa, havia um certo de jeito de entender este homem e falar um pouco dele. Pelas redes sociais de alguns colegas de profissão, como os excelentes Sofia Cerqueira e Cláudio Uchoa, vi relatos parecidos. Da queridíssima Maria Lucia Rangel, alguns relatos mais de bastidores como sobre a noite em que João e Miúcha se conheceram… Em Paris!

O fato é que o jornalista Affonso Nunes nunca tentou uma entrevista com João Gilberto. Provavelmente me situei naquele patamar do fã e procurei manter a linha divisória. Um fá, reconheço tardio. Adolescente, cabeludo e obcecado pelos decibéis do hard rock, guitarras distorcidas e etecéteras, tinha dificuldade em ver genialidade em um cara sentado num banquinho, com apenas um violão e cantando baixo ser reverenciado por tanto. Tomando emprestado parte de um verso de Caetano, pra mim ainda não havia a Bossa Nova e a sua mais completa tradução.

Aliás, veio de Cetano um pronunciamento tão emocionado sobre quem mais o inspirou que sinto o dever de reproduzir na íntegra: “João Gilberto foi o maior artista com que minha alma entrou em contato. Antes de completar 18 anos, aprendi com ele tudo sobre o que eu já conhecia e como conhecer tudo o que estivesse por surgir. Com sua voz e seu violão, ele refez a função da fala e a história do instrumento. Pôs em perspectiva todos os livros que eu já tinha lido, todos os poemas, todos os quadros, todos os filmes que eu já tinha visto. Não apenas todas as canções que ouvi. E foi com essa lente, esse filtro, esse sistema sonoro que eu passei a ler, ver e ouvir. Aos 88 anos, com aspecto de quem não viveria mais muito tempo, João morrer é acontecimento assustador. Orlando Silva, Ciro Monteiro, Jackson do Pandeiro, Ary, Caymmi, Wilson Batista e Geraldo Pereira não teriam sido o que são não fosse por João Gilberto. Tampouco Lyra, Menescal e Tom Jobim. Ou os que vieram depois. E os que virão. O Hino Nacional não seria o mesmo. O mundo não existiria. Sobretudo não existiria para o Brasil. Que era uma região ensimesmada e descrente da vida real fora de suas fronteiras. João furou a casca. O samba não seria samba sem Beth Carvalho cantando ‘Chega de Saudade’. A música não seria música sem a teimosia de João. Ele foi uma iluminação mística. Nenhum aspecto do mundo que ele sempre tocou tão rente pode ameaçar a grandeza da verdade de sua arte. E isso era sua pessoa. É sua pessoa, em todos os sons gravados em matéria ou na minha memória”.

O artista que furou a casca

“João furou a casca” define tudo. Se Tom e Vinícius e toda uma geração ensinaram pra Elizeth as canções do amor demais, João foi o porta-voz disso tudo, o porta-violão também. Quando comecei a ouvir música com ouvidos mais atentos, entrei em parafuso com a quantidade de acordes que cabiam dentro daquele violão tocado por aquele baiano de voz mansa e baixinha. Se músico fosse, não sossegaria enquanto não aprendesse a tirar todos aqueles acordes. O cara colocou a batida do samba toda dentro do violão!!!! Deixo aqui o áudio de uma das canções interpretadas por João que mais expressam sua arte, embora pouco conhecida que é “Esperança Perdida”, de Tom Jobim e Billy Blanco.

Tradição e modernidade

Muito já foi dito sobre o João e certamente não trago aqui nada de novo a respeito desse artista, mas é preciso repetir sempre que a batida de seu violão fincou as raízes mais sólidas do que passou a ser chamado de Música Popular Brasileira. João tinha tradição e modernidade, recebeu influências diversas mas influenciou muito mais. Seu álbum com o saxofonista Stan Getz é até hoje um dos mais vendidos do mundo, tanto quanto os álbuns mais expressivos do Beatles. A Bossa Nova da batida do João representava um Brasil de potencialidades gigantes. O fim dos anos 1950 apresentou nosso cartão de visitas ao mundo com gênios em algumas áreas como Oscar Niemeyer, Pelé e o João. Acho sintomático seu desparecimento no momento em que o Brasil passa a ser motivo de piada mundo afora. João Gilberto mão poderia testemunhar isso.

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