Carlos do Carmo, o ‘subersivo’ do fado

Por Maninho Pacheco

 

Me encontrava em alguma fila no Rio, não sei se de cinema, teatro ou show. (Isso já faz um tempo). Na minha frente, três simpáticas senhoras portuguesas conversavam sobre música. Fafá de Belém acabara de lançar um álbum em que cantava exclusivamente fados. E esse era o tema da conversa das senhorinhas. Elogiavam muito o trabalho da Fafá. Sobretudo voz, e a coragem de gravar um disco de fados em Portugal. Não resisti e entrei na conversa. Foram educadíssimas e atenciosas. Perguntei sobre Carlos do Carmo. Franziram o cenho. As três. “Carlos do Carmo é comunista”, disse a primeira. “Muito chato”, a segunda. A terceira virou às costas. As duas outras fizeram o mesmo. Totalmente no vácuo, preferi deixar pra lá.

Carmo era simpatizante do ultraortodoxo Partido Comunista Português (PCP) e dizia que o 25 de abril arejou o fado. Há uma espécie de Fla-Flu entre os fãs de Carmo e os de Amália Rodrigues. Esses últimos acusam Carmo de ter subvertido o fado. Os de Carmo, apontam Amália como agente salazarista. Nem uma coisa nem outra. Nem Carmo subverteu o fado, nem Amália Rodrigues estava a serviço do temível salazarismo.

Foi bonita a festa, pah", como já dizia Chico Buarque - Foto: Reprodução
Foi bonita a festa, pah”, como já dizia Chico Buarque – Foto: Reprodução

Em fevereiro do ano passado, Carmo concedeu sua última entrevista. Uma espécie de acerto de contas com Amália. Disse ser uma crueldade a patrulha ideológica sobre a qual lhe marcou como uma espécie de pária do fado pós-Revolução dos Cravos. Na entrevista, Carmo foi magnânimo em reconhecer que quem primeiro abriu as portas do fado para o mundo foi Amália Rodrigues. “Sou uma consequência dessa ruptura”, disse.

Nessa entrevista histórica, Carmo nos revela o lado, também magnânimo, de Amália Rodrigues. Segundo um amigo comum o confidenciara após o 25 de abril, Amália dava dinheiro para as famílias dos presos políticos do PCP que estavam em dificuldades. O fado nasce da pobreza. Canta as agruras, os amores e os sentimentos do povo simples. A carniceira, genocida e torturadora Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), a polícia política de Salazar, perseguia fadistas como que a comunistas. Amália cresceu em um bairro operário. Vivenciou de perto os achaques das milícias salazaristas aos seus. No entanto, transitou livremente entre células do PCP e os salões salazaristas. Salazar achava que a podia manipular Amália como um instrumento de marketing. Pretendia toscamente associar sua imagem à dela e capitalizar politicamente, junto a um povo apaixonado por fado e pela fadista. Mal sabia Salazar que quem manipulou seu regime carniceiro foi justamente Amália.

josé Carlos Ary dos Santos, poeta e ativista político - Foto: Reprodução
José Carlos Ary dos Santos, poeta e ativista político – Foto: Reprodução

Fui apresentado ao cancioneiro de Carlos do Carmo pelo queridíssimo José Leal, através do álbum “Um Homem na Cidade” (1977), hoje uma referência obrigatória na história do fado e da própria música portuguesa. Ali, Carmo interpreta apenas poemas do comunista José Carlos Ary dos Santos, musicados por composições ainda hoje consideradas bastante inovadoras, de José Luís Tinoco, Paulo de Carvalho, António Victorino d’Almeida ou Fernando Tordo, entre outros. “Um Homem na Cidade” é um hino de amor a Lisboa. A canção homônima (Ary e José Luís Tinoco) é uma ode a liberdade e a cidadania. Ao ouvir canções como “Cacilheiro” (Ary e Paulo de Carvalho) é impossível não nos transpormos a bordo de uma embarcação cruzando o Tejo. Ouça aqui:

Amigo da música brasileira

Com Ivan Lins, amizade e admiração mútua - Foto: Reprodução
Com Ivan Lins, amizade e admiração mútua – Foto: Reprodução

Grande amigo dos brasileiros, Carmo era confidente de Elis, que ficava hospedada em sua casa quando estava em Portugal. E também, nos últimos anos, usufruiu da íntima amizade com Ivan Lins, morador da Terrinha já há alguns anos. Escreveu Lins, hoje, em sua conta no Instagram: “Carlos do Carmo. Homem extraordinário, grande artista, capitaneou a conquista para fazer do Fado, Patrimônio Imaterial da Humanidade, deu várias cores ao Fado, abrindo espaços para as novas gerações criarem diferentes formas de tocá-lo e cantá-lo. Foi um ativista pela democracia, pela liberdade, pela cultura de seu país. Homem afável, culto, inteligente, educado, foi um artista admirável e coerente. Um encantador de plateias, em qualquer parte do mundo. Portugal perde um herói. Portugal está de luto. Deixo meus sentimentos e minha solidariedade à sua família, em particular, sua guerreira esposa, Judite, mulher extraordinária, aos seus amigos e ao povo português. Foi um dos meus melhores amigos de sempre. Estou muito, muito triste. Que Deus o tenha em bom lugar.”

Na última entrevista concedida, citada acima, Carmo disse ser um afortunado. Teve uma vida feliz. E sentenciou: “Quando a vida é feliz, a morte é leve”.

Leia mais em:

Carlos do Carmo (1939 – 2021) – Sou do fado, sou fadista

 

Amália Rodrigues – o primeiro centenário de uma lenda

Deixe uma resposta