Chico Buarque para desmantelar a força bruta

Por André Luis Câmara


Não se sabe ao certo se para espantar o tempo feio ou remediar o estrago, ou ainda se para um desafogo ou um devaneio. Pode ser até que por isso tudo e mais um pouco, tem bastante gente na internet acessando “Que Tal um Samba”, a nova canção de Chico Buarque. A gravadora Biscoito Fino lançou a faixa nas plataformas digitais nesta sexta-feira (17), dois dias antes do cantor, compositor e escritor completar 78 anos de idade.

O novo samba vem sendo recebido como um bálsamo, um sopro de esperança para os dias tristes que o país vive, em meio ao brutal assassinato de Dom Philips e Bruno Pereira, além de tantas outras mazelas provocadas pelo sombrio cenário político deste Brasil que, passados mais de quatro anos, ainda não teve a resposta de quem mandou matar Marielle Franco.

Quando tantos parecem nada conseguir avistar além de um desgaste ou uma rua sem saída, Chico Buarque aparece para propor um samba que vem “lavar a alma/Tomar um banho de sal grosso, que tal?”
O uso da canção como antídoto ao desalento não chega a ser uma novidade na obra do artista. É disso que ele fala em “Paratodos”, como nesta estrofe: “Nessas tortuosas trilhas/A viola me redime/Creia, ilustre cavalheiro/Contra fel, moléstia, crime/Use Dorival Caymmi/Vá de Jackson do Pandeiro”.

O tema aparece também na menos conhecida “Forrobodó”, da sua festejada parceria com Edu Lobo. A dupla compôs a canção para a trilha sonora de O Xangô de Baker Street, filme inspirado no romance homônimo de Jô Soares: “Desopila o fígado/ É um santo remédio pro lumbago/ Previne distúrbios do vago simpático/ É bom pro nevrótico, o tímido, o gago”.

A grande sambista Dona Ivone Lara conhecia bastante do poder transformador do samba. Ao se tornar colaboradora da psiquiatra Nise da Silveira, a compositora e cantora, que era também assistente social e enfermeira, passou a desenvolver com internos do hospital psiquiátrico Pedro II, no Engenho de Dentro, trabalhos de musicoterapia, que merecem ser melhor estudados e analisados e, sobretudo, reconhecidos.

E ainda sobre a relação entre a música e a saúde, poderíamos lembrar do intrigante ensaio de Mário de Andrade que se chama “Terapêutica musical” e faz parte de seu livro  Namoros com a medicina.

Chico Buarque
Em ‘Que Tal um Samba’ Chico Buarque mostra várias referências musicais, do samba maxixado à Bossa Nova, reverencia a rumba e a salsa sem se prender a nenhum deles

“Que Tal um Samba” propõe “sair do fundo do poço/ Andar de boa/ Ver um batuque lá no cais do Valongo/ Dançar o jongo lá na Pedra do Sal/ Entrar na roda da Gamboa”. Não se parece com o samba tradicional criado no Estácio, muito menos com o samba maxixado da Cidade Nova, e nem é bossa nova. Ao mesmo tempo, mostra todas as referências e as reverências a esses estilos e ao samba-choro, com uma ambientação de rumba, de salsa.

É bem um samba ao estilo de Chico Buarque, que desde a década de 1980, com “Almanaque” e “Pelas tabelas” procura quebrar o ritmo, seguir por caminhos diferentes de melodia e harmonia e, cada vez mais, compor obras que não são tão assoviáveis como as que fazia nas décadas de 1960 e 1970. Mesmo assim continuam contagiantes e deixam de queixo caído quem se permite um tempo para ouvir. “Que tal um samba” conta ainda com o bandolim de Hamilton de Holanda e a percussão de Thiago da Serrinha, além de músicos que fazem parte da banda que acompanha o cantor e compositor ao longo das últimas décadas, como Jorge Helder (contrabaixo), Jurim Moreira (bateria), João Rebouças (piano) e Luiz Cláudio Ramos (violão e arranjos). Confira aqui:

Em seu recém-lançado e ótimo livro Para ouvir o samba: um século de sons e ideias (Funarte, 2022), o violonista Luís Filipe de Lima observa que “mais da metade da caudalosa obra de Chico é formada por sambas”. No entanto, ao fazer a provocação indagando se Chico é ou não sambista, diz que “meus interlocutores quase sempre se dividem ou então permanecem em dúvida”.

Segundo o autor, tudo depende da ideia de sambista que se tem em mente. Chico pode ser enquadrado como sambista por um critério mais amplo ou excluído por um conceito mais restritivo. “A questão é que a definição mais ampla se reporta aos cânones da música popular, fundamentada na relação de consumo, enquanto a definição mais austera aponta para o quadro da música tradicional, pautada pela produção de sentido, a partir da pertença e da atuação em uma comunidade”, escreve Luís Filipe de Lima.   

Diante desse paradoxo, o autor arremata: “Chico Buarque, pois, é o gato de Schrödinger do samba”. A imagem remete à experiência de mecânica quântica desenvolvida pelo físico austríaco Erwin Schrödinger para ilustrar a situação de um gato numa caixa, que não está apenas vivo ou apenas morto, e se encontra numa sobreposição desses dois estados. Xi, se eu tentar entrar nesse papo, melhor puxar um samba, que tal?

Por que será que há mesmo tanto mistério no samba? Ou será apenas simples vontade de cantar e dançar, já que “sem samba não dá”, como afirma Caetano Veloso em uma de suas mais recentes criações. O mesmo Caetano, aliás, de quem Chico cita versos de “Beleza pura”, ao falar da pele escura, e não de dinheiro, mas da cultura.

Alfredinho: dono do Bip-Bip deixou saudade e o bar segue firme com samba, choro e bossa nova. Domingo, 19/6, é dia da tradicional homenagem ao aniversário de Chico Buarque

O impacto do novo samba de Chico Buarque poderá ser conferido neste domingo, 19 de junho. No dia em que o artista completa 78 anos de idade, o botequim Bip Bip, do saudoso Alfredo Jacinto Melo, o Alfredinho, em Copacabana, no Rio, promove mais uma homenagem pelo aniversário do autor de “Que tal um samba”. A partir das 17h, começa o encontro nesse bar “a serviço da amizade” para revisitar um repertório de centenas de canções. Tem tudo para ir madrugada adentro, com cuidado para não importunar a vizinhança. Vai ser um domingo de samba e de Chico, embora sem a presença do artista. Um momento para esconjurar a ignorância e desmantelar a força bruta. Que tal?

Em setembro, nos dias 6 e 7, o cantor e compositor inicia por João Pessoa (PB) nova turnê de shows pelo país. Dessa vez, contará com a participação especial da cantora Mônica Salmaso. No Rio, as apresentações acontecerão de 5 a 15 de janeiro de 2023, no Vivo Rio. 

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