Cristina Buarque, 70 anos

Cristina Buarque

Por Henrique Cazes*
Especial para Na Caixa de CD

 

Cantar samba não é fácil. E não falo aqui apenas das dificuldades de domínio do ritmo, da divisão. Nem tampouco das melodias improváveis que nossos compositores geniais nos legaram, fugindo ao óbvio. Dois aspectos são especialmente sensíveis: a escolha do repertório e a atitude interpretativa, colocando a voz a serviço da música e não o contrário. Garimpar sambas que por vezes passaram em branco ou que não tiveram uma chance de sair do ineditismo é uma especialidade. Já a questão do canto, depende de paixão, de uma profunda identificação com o que está sendo cantado. Pois bem, nesses dois quesitos de maior dificuldade, ao meu ver, ninguém acertou tanto nas últimas cinco décadas do que nossa aniversariante de dezembro, Maria Christina Holanda Ferreira.

A fama para Cristina veio com a gravação de 'Quantas Lágrimas', belíssimo samba de Manecéa - Foto: Reprodução
Cristina passou a ser conhecida com a gravação de ‘Quantas Lágrimas’, belíssimo samba de Manacéa – Foto: Reprodução

Tendo estreado em 1967 no LP “Onze sambas e uma capoeira”, sobre a obra de Paulo Vanzolini e no ano seguinte brilhado ao lado de Chico no dueto que se tornaria um clássico, “Sem Fantasia”, a voz de Cristina se tornou de fato conhecida em 1974 com o sucesso do samba de Manacéa,  “Quantas Lágrimas”, lançado em sem primeiro LP.

A partir daí, a cantora construiu uma discografia pessoal preciosa, resgatando pérolas perdidas. Participou também como convidada em inúmeros projetos, como foi o caso do delicioso diálogo com João Bosco em “Vaso Ruim Não Quebra”, samba deste com o insubstituível Aldir, gravado em 1977.

Ouça aqui Chico e Cristina cantando “Sem Fantasia” e “Com Açúcar e Com Afeto num vídeo raro do acervo pessoal de Miúcha:

Em 1985 produziu junto com Mauro Duarte um LP que chamou a atenção para a qualidade da obra desse compositor, alçando-o ao patamar merecido. Como se tratava de um disco independente, os LPs eram vendidos de mão em mão e uma situação que vivi mais de uma vez, foi encontrar Cristina e Mauro na rua ou num boteco, com um carrinho de feira cheio de LPs. Você chegava, batia um papo, tomava um copo, lembrava de um aniversário e já saía com o presente autografado. Prático, não?

Quando em 1986, o amigo japonês apaixonado por samba, Katsunori Tanaka, me perguntou o porquê de só haver 1 LP da Velha Guarda da Portela e, em seguida, quis saber quanto custaria para fazer outro, foi para a Cristina que eu liguei. E foi graças a sua credibilidade junto aos velhos sambistas de Oswaldo Cruz que existem os dois discos produzidos por Tanaka com o grupo, um de repertório próprio, outro homenageando Paulo da Portela.

Pouco depois, Cristina passou um tempo morando em Copacabana e se tornou sócia do Alfredinho no lendário bar Bip-Bip. A chegada dela no espaço mudou de imediato dois aspectos. O bar passou a abrir cedo, logo depois do almoço e a música se tornou um atrativo. Inicialmente não era música ao vivo, mas uma coleção de fitas cassete com sambas espetaculares selecionados por Cristina. E foi ali, nas tardes de meio de semana e ouvindo aquela avalanche de obras primas que surgiu a ideia de fazermos um show sobre Noel Rosa. A dureza era grande e resolvemos batizar o espetáculo com o título de um samba de Noel, “Sem tostão”, acrescentando ainda a frase profética do Poeta da Vila: a crise não é boato. Estreamos logo depois do Carnaval de 1992, fizemos um segundo show em 2.000, “Sem tostão 2, a crise continua” e até o centenário de Noel, em dezembro de 2010, foram dezoito anos de muito trabalho e muitas gargalhadas.

Cristina Buarque em seu refúgio na bucólica Paquetá - Foto: Reprodução
Cristina Buarque em seu refúgio na bucólica Paquetá – Foto: Reprodução

Ao longo do tempo pude testemunhar que, ao se aproximarem de Cristina, jovens artistas eram inoculados com a paixão pelo samba e pela busca de repertório. Três exemplos bem-sucedidos e em circulação são “O samba é minha nobreza” registro em estúdio do show de 2000, a homenagem a Candeia com o coletivo Terreiro Grande de 2007 e o impecável “O samba informal de Mauro Duarte” de 2008, com o quarteto Samba de Fato.

Vivendo com a simplicidade dos sábios na ilha de Paquetá, pedalando sua bicicleta orgulhosamente ornada com o escudo do Fluminense, Cristina curte netos, filhos, gatos e amigos, não necessariamente nessa ordem. Já que não poderemos fazer um samba animado e reunir seus admiradores nesse dia 23 de dezembro de 2020 para comemorar seus 70 anos, sugiro que ouçamos os discos da Cristina e façamos um brinde a essa eterna apaixonada pelo samba. De preferência com uma cerveja “sem frescura”, como ela diria.

 

*Publicado originalmente no portal do IMMuB, nosso parceiro em compartilhamento de conteúdo

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