Desengaiola, uma deliciosa reunião de amigos

Moyseis Marques, Alfredo Del-Penho, João Cavalcanti e Pedro Miranda gravaram o álbum 'Desengaiola' - Foto: Sabrina Mesquita
Capa do álbum 'Desengaiola'
Capa do álbum ‘Desengaiola’

Boa parte dos frequentadores dos melhores shows de samba realizados a partir da chamada retomada da Lapa já viu Alfredo Del-Penho, João Cavalcanti, Moyseis Marques e Pedro Miranda dividindo o palco. E os mesmos sempre se perguntavam quando os quatro cantautores teriam um registro fonográfico juntos. Enfim, o pedido foi atendido e os quatro canários (gíria usada no meio musical para definir os cantores) fazem do álbum “Desengaiola” (Som Livre/MP,B Discos) uma profissão de fé no samba.

Nenhum dos quatro veio de comunidade, mas desde novos se embebedaram de samba e foram construindo um vasto repertório de intérpretes até a chegada das primeiras composições. À exceção da deliciosa cadência de “Puro Ouro” (Joyce Moreno) e de uma inspirada releitura de “Alagados” (Bi Ribeiro, Herbert Vianna e João Baorone), todas as as demais faixas do álbum (16) têm pelo menos um dos quatro rapazez da Lapa como autor.

“Só sei que um devaneio interveio a meu favor”. Os versos iniciais de “Alameda Palmares”, canção inédita que abre o ótimo “Desengaiola” são absolutamente autorreferentes. Foi nessa mesma alameda, no distrito de Palmares, em Paty do Alferes (RJ), que, meses antes, Alfredo, João, Moyseis e Pedro sonharam gravar seu registro de estreia. Pouco tempo depois lá estavam os quatro, captando em áudio e vídeo o aguardado trabalho coletivo, que recebe formato de áudio nos aplicativos de streaming e de vídeo álbum no YouTube repleto de bastidores dos dias passados numa aprazível casa na serra. É uma delícia de ouvir e se ver.

“E costurou nossas vidas pelo meio, sem receio e sem pudor”. O verso seguinte da canção inaugural indica o clima de irmandade que cerca o trabalho audiovisual, com produção musical de João Cavalcanti e Pedro Luís e direção de Eduardo Hunter Moura. Foi uma semana de imersão em Palmares, numa convivência que costurou o enorme volume de trabalho com muita diversão, em um ambiente familiar e afetuoso.

“Aqui estou, pra dizer de peito cheio que o passeio começou”. E o passeio começa a se desengaiolar quando percebem, surpresos, a quantidade de parcerias que já existia entre eles. Um repertório cada vez mais coletivo tanto que as faixas “Alameda Palmares” e “Luz do Meu Terreiro” são assinadas pelos quatro; o baião amodernado “Nada Não”, “Encanto” e a divertidíssima “Nem Misturado Nem Junto” são de João e Moyseis; “Diplomata” e “Pra Quem Quiser Escutar”, de Alfredo e João; “Boas Intenções” e “Rosa Canção”, de Alfredo e Moyseis; Pedro Miranda assina “Desengaiola” (com Alfredo), “Meu Pecado É Sorrir” (com Moyseis) e “Pó Pará” (com João e Edu Neves), além de “Vontade de Sair”, com Cristóvão Bastos. Completam o repertório próprio “Gatilho”, de Moyseis com Teresa Cristina, “Fuzuê”, de Alfredo com Chico César, e “Poeta É Outro Lance”, uma pérola em que Moyseis confessa que compor samba não é só para quem quer.

A escolha das duas canções “de fora” é plenamente justificável: “Puro Ouro”, de Joyce, foi feita, segundo ela própria, em referência e homenagem à geração dos quatro artistas; e “Alagados”, hit dos Paralamas do Sucesso, já faz parte do repertório do quarteto desde o primeiro show juntos, e ganhou novo arranjo que sublinha a força da letra que, infelizmente, soa incrivelmente atual apesar de ter sido escrita nos anos 1980.

Os quatro e Pedro Luis, coprodutor do álbum em dias de música e muita confraternização em Paty do Alferes - Foto: Miriam Roia
Os quatro e Pedro Luis, coprodutor do álbum em dias de música e muita confraternização em Paty do Alferes – Foto: Miriam Roia

“Sigo meus anseios, perco os freios, jogo as palmas para o céu. Alameda Palmares. Ah, todos os lugares que o meu coração visitou”. Como indica a sequência da canção, a vivência de Alfredo, João, Moyseis e Pedro está sintetizada nesse encontro, que começou há mais de 20 anos, desde o florescer da reocupação cultural do bairro da Lapa. O entrosamento dos quatro é tão grande e natural que a decisão de gravar o ‘Desengaiola’ em takes ao vivo nos diversos ambientes da casa de campo mostrou-se uma decisão mais acertada do que a gravação segmentada feita dentro da frieza de um estúdio.

Os quatro artistas estiveram na gênese de alguns dos grupos mais importantes daquela cena, como Casuarina, Cordão do Boitatá, Grupo Semente e Anjos da Lua, e sempre estiveram presentes uns nos álbuns e shows dos outros, até formatarem, em 2012, o show “Segunda Lapa”, quando se juntaram pela primeira vez no palco. Isso está completando 10 anos, mas não ficou por aí. Reuniram-se algumas outras vezes, como na excelente homenagem que fizeram pelo centenário de Jackson do Pandeiro, no Circo Voador, em 2019 – show que, aliás, merecia ter corrido o Brasil ou, no mínimo, ganhar registro fonográfico num álbum ao vivo.

“Um refúgio, um aconchego, um motivo pra compor. Um sorriso de esperança, um remanso pro amor”. Ainda os versos de “Alameda Palmares”, segue dando o principal recado que os quatro rapazes da Lapa querem mandar, que é levar esse encontro para os cantos do Brasil e do mundo, num desejo genuíno de celebrar o encontro e o espírito comunitário. “Desengaiola” estreia em cena no Circo Voador, na próxima sexta. Porque, para eles, tudo começa e acaba na Lapa.

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