Elza Soares, do Planeta Fome à eternidade

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No carnaval da Sapucaí de 2020, antes do mundo parar, o samba da Mocidade Independente de Padre Miguel já avisava em alto som: “Laroyê e Mojubá, liberdade / Abre os caminhos pra Elza passar / Salve a mocidade / Essa nega tem poder / É luz que clareia / É samba que corre na veia”. Neste 20 de janeiro, feriado de São Sebastião, padroeiro da cidade do Rio de Janeiro, Elza Soares, força da natureza e da música brasileira, aos 91 anos, morre em casa de causas naturais, segundo sua família.

Elza Gomes da Conceição, nascida em 23 de junho de 1930 no Rio de Janeiro, teve uma das mais ativas e ecléticas carreiras musicais.  Gravou 34 discos desde o fim dos anos 50 até 2019.  Transitou pelo samba, jazz, eletrônica, hip hop e funk. No ano 2000 foi escolhida pela BBC como “a voz do milênio”. Filha de operário e lavadeira, Elza Gomes da Conceição nasceu em junho de 1930, no Rio de Janeiro. Foi criada na favela de Moça Bonita e, em Padre Miguel. Aos 12 anos, foi obrigada pelo pai a se casar com Antonio Soares, conhecido como Alaúde, de quem pegou o sobrenome. Aos 13, ela foi mãe pela primeira vez. Aos 15, já tinha perdido um dos filhos para a fome. Aos 21, já era viúva.

Seus fãs a viam como uma diva, o que condiz com seu talento inato. Mas Elza teve uma vida pessoal marcada por dificuldades e tragédias. A cantora perdeu dois filhos, que morreram de fome ainda crianças. Teve uma filha, Dilma, sequestrada por um casal de confiança, com a qual só se encontrou depois de anos, com ela já adulta. Com Mané Garrincha, Elza viveu entre 1962 e 1982 seu relacionamento mais famoso (e conturbado). Eles se conheceram alguns meses antes da Copa do Mundo de 1962, durante um treino do Botafogo, time no qual Garrincha jogava à época. No entanto, o jogador era casado e Elza namorava o músico Milton Banana.

Elza Soares - 1960 - Arquivo Nacional - força da natureza - e da música- morre aos 91 anos de idade
Elza Soares – 1960 – Arquivo Nacional

Elza trabalhava como encaixotadora e conferente em uma fábrica de sabão. Começou na música em 1953, quando fez um teste na Rádio Tupi, no programa “Calouros em Desfile”. Foi quando deu uma famosa resposta a Ary Barroso, que inclusive deu nome a “Planeta Fome”, 34º álbum de sua carreira, e também o derradeiro, lançado em 2019.

Na ocasião, o famoso apresentador perguntou a ela “o que você veio fazer aqui?”. “Vim cantar”, respondeu Elza. Ary retrucou. “E quem disse que você canta?”. “Eu, seu Ary”, ela devolveu. “Menina, de que planeta você veio?”, o apresentador continuou. “Do mesmo planeta que você, seu Ary. Eu venho do Planeta Fome”.

Primeiro álbum foi lançado nos anos 50

Elza gravou seu primeiro álbum em 1959. Em plena efervescência bossanovista, a jovem cantora de Padre Miguel rompeu a bolha e devolveu o samba às rádios com o hit “Mulata Assanhada” e sua versão para um clássico de Lupicínio Rodrigues (“Se Acaso Você Chegasse”) inaugurou uma fase de sucesso dos artistas do gênero no mercado fonográfico que já estava dominado pela canções da Bossa Nova, tanto que o trabalho, graças a uma estratégia esperta da gravadora Odeon tinha por título “Se Acaso Você Chegasse – A Bossa Negra” . Sua presença permitiu na grande mídia da época permitiu que o grande público pudesse ter acesso às músicas das comunidades que jamais ultrapassavam as fronteiras dos terreiros das agremiações de carnaval e rodas de samba do subúrbio. Nos anos 60, Elza gravou discos com cantor Miltinho (1928–2014) e o baterista Wilson das Neves (1936–2017). Entre eles obras-primas  como “O Samba é Elza Soares” (1961), “Sambossa” (1963), “Na Roda do Samba” (1964) e “Um Show de Elza” (1965).

O já citado “Planeta Fome” comprova a inquietude e o ecletismo da artista, que passou por algumas viradas estéticas. O processo começou já década de 1980 quando gravou o antológico dueto com Caetano Veloso em “Língua”. A voz rasgada, esticada aos limites nos versos do refrão “Flor do Lácio / Sambódromo / Lusamérica / Latim em pó / O que quer / O que pode esta língua?” é Elza Soares em estado puro e vale à pena rever a participação contagiante da cantora durante o saudoso programa Chico & Caetano (TV Globo), uma das propostas musicais mais inteligentes exibidas até hoje pela TV brasileira que, como sabemos, é concessão pública e deveria nos formar como cidadãos pensantes e não como consumidores:

Mas a guinada total foi em 2015, com o antológico “A Mulher do Fim do Mundo”. A artista mergulhou na fonte de juventude com uma sequência de trabalhos audaciosos e plenos de contemporaneidade e brasilidade. Esta sonoridade renovada aproximou Elza da juventude e a legitimou como importante ativista política, porta-voz das pautas como a defesa dos direitos da população negra, das mulheres e das comunidades LGBTQIA+ porque muito disso ela sofreu na pele desde moça.

Depoimento forte sobre uma fase crítica

Elza e Garrincha durante o período na Itália
Elza e Garrincha durante o período na Itália

Em 1970, ele e o craque Garrincha, com quem se casou em 1966, passou uma temporada na Itália, não por vontade própria, como conta Elza nesse depoimento forte, um desabafo de uma mulher de fibra: “Além de ter sido um período muito difícil para o Brasil, a ditadura militar foi quando tive minha casa metralhada. Estávamos todos lá: eu, Garrincha e meus filhos. Os caras entraram, metralharam tudo e nunca soube o motivo. Era 1970, já tínhamos recebido telefonemas e cartas anônimas, nos sentíamos ameaçados e deixamos o país. Acredito que fizeram isso por conta do Garrincha, mas também por mim, pois eu era muito inflamada e então, como ainda hoje, de falar o que penso. Eu andava muito com o Geraldo Vandré e devem ter pensado que eu estava envolvida com política. Mas eu sou uma operária da música, e qual é o operário que não se revolta? Fomos para Roma, e lá o Garrincha, que não tinha sido convocado para aquela Copa, estava em desespero por não estar jogando e por não ter onde morar. Estávamos num hotel, vendo o Brasil ser campeão (…) Enquanto se celebrava o fato de o país se tornar o primeiro tricampeão na história da Copa do Mundo, o Brasil fazia barbaridades com sua população. O Garrincha sentia um misto de alegria e dor, porque ele queria comemorar, mas, ao mesmo tempo, sentia repulsa por tudo que nos havia acontecido (…) Aquela foi a época em que ele mais bebeu, e não saía de casa, pois tinha vergonha de aparecer embriagado. Eu fazia de tudo para ele não beber, mas não adiantava (…) Continuamos vivendo num hotel e tivemos grande ajuda de Chico Buarque e Marieta. Eles tinham se exilado na cidade e foram dois amigos de alma. Ali eu tive um bom empresário, trabalhei muito e fui ganhando o dinheiro com o qual pagava todas as contas. Durante um jantar, conheci Ella Fitzgerald, que estava fazendo shows com repertório de bossa nova e teve um problema de saúde. Eu acabei substituindo-a. Mas, quando descobriram que eu estava trabalhando na Itália sem documentação, tivemos de sair de Roma – então fomos para Portugal por um tempo (…) Passados 50 anos do golpe, ninguém jamais tomou nenhuma atitude sobre o que nos aconteceu naquele 1970, e eu continuo brigando pelo Mané, até hoje. Quando eu canto “Meu Guri”, canto com muita força, e essa é uma maneira que eu tenho de cantar uma música do Chico, mas homenageando o Mané. Eles são os dois guris de “my life”, escreveu Elza, aos 76 anos. Essa dor, essa sensibilidade, estão em várias versões ao vivo para a canção de Chico. E essa é uma delas:

De volta ao sucesso

Os tempos difíceis na Itália explicam os altos e baixos em termos financeiros, mas Elza era gigante se sempre se virou e, de volta ao Brasil, engatou sucessos em sequência como cabe às divas: “Salve a Mocidade” (Luiz Reis); da trilha sonora da novela “O Rebu (1974); “Bom dia, Portela” (David Correa e Bebeto Di São João) e “Pranto Livre” (Dida e Everaldo da Viola, do álbum “Elza Soares” (1974); e “Malandro” (Jorge Aragão e Jotabê), do álbum “Lição de Vida” (1976).

O último álbum lançado “João de Aquino e Elza Soares”, que já mereceu destacada resenha aqui Na Caixa de CD há poucos dias, tem a data de 2021 mas foi gravado na década de 1980. Sabe aquelas preciosidades que dormem no limbo analógico das gravadoras? Pois se não fosse o maravilhoso trabalho de resgate desses fonogramas pela Deck Disk estaria inédita até agora. Por sorte, Elza pode apreciar o maravilhoso dueto com um dos maiores violonistas vivos do país. O último show de Elza foi no Festival Psica, em Belém (PA) no dia 19 de dezembro do ano passado. Nesta semana, nos dias 17 e 18, gravou shows no Theatro Municipal de São Paulo para o lançamento de um DVD.

Lembranças de um amor eterno

Mesmo após tanto tempo da morte de Garrincha, Elza contou contou que sempre sonhava com o ex-atleta. “Eu viajo para o paraíso quando penso nele. Sonho com ele até hoje”, disse a artista em participação recente no programa de entrevistas do jornalista Pedro Bial. “Foram 17 anos juntos. Hoje é chique ser mulher de jogador, é uma promessa de futuro. Mas, quando se faz por amor, a pessoa não se arrepende nunca. Não tenho mágoas, passado é passado. Passou! Eu vivo o agora. O futuro não sei”, disse em outra entrevista, de 2016, para a revista Quem.

O filho Garrinchinha, o único com o atleta, morreu em acidente de carro em 1986, aos 9 anos. O quatro filho da cantora a morrer foi Gilson, aos 59 anos, em 2015. “A única coisa do passado que ainda me machuca é a perda dos meus quatro filhos. O resto tiro de letra. Mas filho é uma ferida aberta que não cicatriza, estará sempre presente”, costumava dizer.

Elza ao tomar a segunda dose da vacina
Elza ao tomar a segunda dose da vacina: ‘Viva a ciência!’, disse aos fãs

No início de dezembro, Elza anunciou que estava com covid e fez um apelo para a importância da vacina. Ela não teve sintomas e já estava com a dose de reforço. “Você precisa escutar isso e somente eu posso te contar. Fui um susto pavoroso, mas, ao mesmo tempo, uma experiência que passei sem qualquer sintoma e venci o vírus!”, iniciou ela. “Eu tive covid, gente, e as vacinas salvaram minha vida. Fiz questão de gravar esse depoimento, de mostrar meu exemplo para pedir para vocês que vacinem-se!”, pediu. “Por favor, vacinem-se! Essa doença horrorosa é muito perigosa. Viva a ciência”, finalizou numa declaração de amor à vida, mesmo tanto dela tendo apanhado.

Durante a pandemia Covid-19 ela cantou em lives e estava produzindo um novo álbum de estúdio. Cantou até o fim, como sempre desejou. Amava a vida, respeitava a ciência e as diferenças. Seu velório e sepultamento tiveram restrições em função das necessidades sanitárias, mas seu corpo seguiu até o cemitério num carro de bombeiros tal os campeões. Elza, como já disse o escritor Ruy Castro, é “uma artista indestrutível” que superou todos os dramas que a vida lhe impôs e nos deixou com serenidade e exemplos de quem abe exatamente onde fica o Planeta Fome.

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