Reconhecido como um artista universalista que sempre dialogou com os mais variados gêneros musicais, Gilberto Gil sempre reconheceu nos ritmos nordestinos sua grande influência. Em cada um de seus álbuns é possível pinçar ou baião, o xaxado ou xote, como se fossem fios condutores de sua trajetória artística e, sobretudo humana. Nesta sexta-feira (26), no dia em que completou 78 anos, Gil ganhou de presente um belo presente do Trio Nordestino – o álbum tributo “Trio Nordestino Canta Gilberto Gil”, uma iguaria musical servida com gosto de pé-de-moleque pela Biscoito Fino.
O Trio Nordestino foi criado em 1958 com a formação mais tradicional do gênero. Hoje, seus integrantes são Luiz Mário (triângulo e voz), Jonas Santana (zabumba e voz) e Tom Silva (acordeom e voz), que passeiam com segurança nas reminiscências forrozeiras de Gil, mesmo quando uma canção específica não pensada nesta linguagem musical.
Diante da homenagem, Gil comentou: “O fato de eles terem transposto muitas dessas canções – a maioria delas – para essa forma extraordinariamente reduzida que é a do trio, me deixa comovido. Eles resolveram gravar canções minhas: do meu ponto de vista pessoal, é uma homenagem extraordinária e sob o ponto de vista das minhas grandes afeições também, porque o baião, a música nordestina, é uma das raízes mestras do meu próprio trabalho”.
Generoso, Gil acrescenta que esse outro jeito de apresentar suas canções é uma devolução. “Muito do meu modo de cantar, do meu modo de compor, vem do nordeste, dessa região, desse modo de entender a vida e de expressá-la, tão bem registrada agora pelo Trio Nordestino”, destaca.
Aos dois anos, em Ituaçu (BA), o pequeno Gilberto Gil já dizia que queria ser “musgueiro” — como sua fala de criança se referia a quem fazia música. Suas primeiras referências eram cantadores e sanfoneiros como Cinézio, um artista local. Pelas ondas do rádio, chegava a voz de Luiz Gonzaga. Aos 10 anos, Gil começou a estudar acordeom. Esta base e a eterna curiosidade musical fizeram de Gil um dos artistas mais completos e complexos de nossa música. Já no Rio de Janeiro, nos anos 60, absorveu novas influências devorando a Bossa Nova, o jazz e o rock and roll. Além de cantar, foi firmando-se como frande instrumentista a ponto de hoje ser um dos melhores violonistas de música popular entre os brasileiros vivos. Escreveu sua própria história ao tornar-se um dos arquitetos do Tropicalismo ao lado de outros baianos modernos como Gal Costa e os irmãos Caetano Veloso e Maria Bethânia. A MPB nunca mais seria a mesma.
E “Trio Nordestino canta Gilberto Gil” traz consigo a força original, mais emblemática da obra do genial artista baiano. Para montar o repertório, o grupo realizou um interessante trabalho de pesquisa e selecionou entre os muitos xotes e baiões espalhados por discos de Gil, em suas diferentes fases. Ou mesmo fora de seus álbuns, como é o caso de “Abri a porta”, que abre o disco. Lançada em 1979 pelo A Cor do Som, a canção foi gravada por Gil ao lado de seu parceiro Dominguinhos em 1980, mas num disco do sanfoneiro. Mas o trio foi além da obviedade de catar o lado sertanejo na discografia do artista a ser homenageado.
Uma boa surpresa é a releitura do grupo para “Procissão”, dos primeiros anos da carreira de Gil que aborda o misticismo, marca registrada do povo sertanejo. A pop “Cores vivas”, pinçada de “Luar”, álbum clássico de 1981, mostra as nuances melódicas que podem erguer uma ponte imaginária de Juazeiro a Kingston. O próprio Gil costuma lembrar com humor do momento em que apresentou a música de Bob Marley a Dominguinhos. “Isso que é reggae, é? Êta, xotezinho safado”, devolveu o parceiro. O clima se repete em “Vamos fugir”. E a funkeada “Palco”, um dos hits de “Luar”, cai com uma luva na versão pé-de-serra. Ouça aqui a íntegra do álbum:
“Refazenda”, do álbum homônimo, de 1975, um dos grandes manifestos da visão de Gil sobre seu lugar no mundo mostra preciosa sintonia com os sotaques propostos pelo Trio Nordestino. O mesmo acontece no ijexá “Toda Menina Baiana”, em que os batuques de candomblé são incorporados pelos instrumentos do power trio sertanejo.
A canção de Gil menos conhecida do repertório selecionado pelo Trio Sertanejo é “Minha princesa cordel”, que teve apenas uma gravação, em 2011, para a trilha da novela “Cordel encantado” num dueto de Gil com Roberta Sá. Pontos para o conjunto.
Para embalar este junho sem “arraiás” pelo Brasil, o álbum tem fecho de ouro com “Expresso 2222”, o baião futurista é deglutido e reprocessado pelo trio na simplicidade mais plena. É como se o expresso partisse de Bonsucesso não na direção de 2001, mas da Ituaçu natal de Gilberto Gil, menino “musgueiro” com os pés no chão. O querido aniversariante tem mais é que se deliciar com este mimo. Longa vida, mestre!
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