Histórias das canções de Marino Pinto no repertório de João Gilberto

Há 60 anos, o LP Chega de saudade se tornava marco da bossa nova, depois da estranheza e do sucesso do 78 rpm (Odeon 14.360) lançado, em setembro de 1958, que trazia, num lado, o antológico samba de Tom e Vinícius (na verdade identificado como samba-canção no rótulo) e, no outro lado, uma composição do intérprete João Gilberto, Bim-bom (“é só isso meu baião/ e não tem mais nada não”). Ambos os lados tinham, além do nome do intéprete, a informação “com Antônio Carlos Jobim e sua orquestra”.

O mesmo Tom, que para Chico Buarque seria o “maestro soberano”, escreveria uma apresentação de João Gilberto, na contracapa do LP (Odeon 3073) batizado com o título de sua composição com Vinícius. No Brasil, os LPs começaram a chegar ao mercado na primeira metade da década de 1950, ainda no formato 10 polegadas, com quatro faixas de cada lado. A sigla com a qual passariam a ser popularmente chamados era a abreviatura de Long-Playing ou Long Play, exatamente porque tinham uma duração maior, em 33 rotações por minuto, tocavam por mais tempo que os 78, estes com apenas duas faixas de cada lado. No entanto, após o aparecimento dos LPs de 12 polegadas, com média de seis faixas de cada lado, aqueles passariam a ser tratados simplesmente de 10 polegadas ou 10 pol.

O disco que saía em abril de 1959 já era o LP tal qual até hoje se conhece, em 33 rpm, com seis faixas de cada lado. Segundo Ruy Castro, em Chega de saudade – a história e as histórias da bossa nova (Companhia das Letras, 1990), foi gravado nos estúdios da Odeon, então funcionando no edifício São Borja, na Avenida Rio Branco, no Rio, entre os meses de janeiro e fevereiro. Para completar as quatro faixas aproveitadas dos dois 78 rpm já produzidos (depois do primeiro, João Gilberto lançara também o que trazia Desafinado, de Tom e Newton Mendonça, e outra de sua própria lavra, Ho-ba-la-lá) outras oito seriam acrescentadas. No dia 23 de janeiro, foi gravada Brigas nunca mais, de Tom e Vinícius; no dia 30, Morena boca de ouro, de Ary Barroso.

“Mas, então, num só dia, 4 de fevereiro”, conta Castro, “ele foi e gravou nada menos que as outras seis: Lobo bobo e Saudade fez um samba, de Lyra e Bôscoli; Maria Ninguém, só de Lyra; Rosa morena, de Caymmi; É luxo só, de Ary Barroso e Luís Peixoto; e Aos pés da cruz, de Marino Pinto e Zé da Zilda”.

Esta última ficaria como a quinta faixa do lado B do LP, a penúltima do disco, portanto. Sucesso na voz de Orlando Silva, em 1942, destacava uma característica que João Gilberto manteria por toda a carreira e em sua discografia: a de mesclar canções recentes com coisas antigas. Foi o que levou, por exemplo, a fazer releituras primorosas de Caymmi e Ary Barroso e a incorporar a seu repertório o que fora gravado por conjuntos vocais desaparecidos, como Anjos do Inferno. Caso clássico é o de Doralice, incluído no segundo LP de João (O amor, o sorriso e a flor), samba lançado pelos Anjos do Inferno e uma das raras parcerias de Dorival Caymmi, que nesta contou com a colaboração do pouco lembrado e excelente compositor Antônio Almeida.

Mesas do Nice

Tanto Doralice quanto Aos pés da cruz nasceram das amizades e dos negócios que se faziam nas mesas do Café Nice, lugar inaugurado como Casa Nice, em 1928, na Avenida Rio Branco, esquina com Rua Bittencourt Silva, e que ali funcionou até meados da década de 1950, para dar lugar ao prédio da Caixa Econômica Federal, que ainda lá se encontra.

Frequentavam assiduamente o Nice compositores como Marino Pinto e Antônio Almeida, e também outros menos habituais como Caymmi e Zé da Zilda (na verdade, José Gonçalves, também conhecido como Zé com Fome). Não, o Nice não era o único celeiro de música popular na cidade do Rio de Janeiro, havia muitos outros, como o entorno da Praça Tiradentes. Mas seguramente, nas décadas de 1930 e 1940, foi o lugar mais badalado e comentado por quem andava atrás de músicas para gravar, compor ou mesmo comprar. Como relata Nestor de Holanda, em Memórias do Café Nice: subterrâneos da música popular, havia ali também os chamados “comprositores”.

 

No interior do Nice, Roberto Martins mostra novo samba aos colegas compositores. Marino Pinto está sentado do lado oposto, de bigode, ao lado de Jorge Faraj, que fuma (foto cedida ao autor por Lauro Gomes de Araújo, biógrafo de Roberto Martins)

Era no Nice que compositores como Marino Pinto passavam horas bebendo café e conversando, propondo parcerias, mostrando ideias de música, completando uma letra. Um ambiente predominantemente masculino, com raras exceções, como a da extraordinária cantora Aracy de Almeida, intérprete de Noel Rosa, Wilson Baptista e também de Marino Pinto, sendo a primeira a gravar uma composição sua, em 1939, o samba Fale mal mas fale de mim, um dos três que fez em parceria com Ataulfo Alves.

Maneira intransferível

Integrante por um curto período do conjunto vocal Garotos da Lua, o baianao João Gilberto jamais deixou de estar atento a esse repertório fabricado entre as mesas do Nice e que ainda reverberava quando iniciou sua carreira musical. Ao se tornar o intérprete primeiro do que viria ser depois reconhecido como bossa nova, procurou manter uma forte ligação com esses sambas muitas vezes compostos ao som de uma caixa de fósforos.

Na contracapa do LP Chega de saudade, Antonio Carlos Jobim revelava: “Nossa maior preocupação, neste long-playing foi que Joãozinho não fosse atrapalhado por arranjos que tirassem sua liberdade, sua natural agilidade, sua maneira pessoal e intransferível de ser, em suma, sua espontaneidade”. E mais adiante o maestro afirma: “suas ideias estão todas aí. Quando João Gilberto se acompanha, o violão é ele. Quando a orquestra o acompanha, a orquestra também é ele”.

A famosa capa do LP com a foto feita por Chico Pereira e leiaute (ou Layout, como preferiam) do lendário Cesar G. Villela

E foi com essas ideias, essa espontaneidade, que ele se manteve ao longo de toda sua trajetória, fazendo do violão e da voz um só corpo, e revisitando constantemente o repertório de Dorival Caymmi, Ary Barroso e, no caso específico, de Marino Pinto.

Chico Pereira

No segundo semestre de 1958, quando se preparava para gravar seu primeiro álbum, João Gilberto foi com Astrud, então sua mulher (e que estouraria, poucos anos depois, nos Estados Unidos, com The Girl from Ipanema) a um apartamento que ficava num dos prédios da Rua Fernando Mendes, em Copacabana. Uma rua pequena, que vai da Avenida Atlântica à Avenida Nª Sª de Copacabana, mas muito emblemática para a música popular brasileira. Durante muitos anos ali funcionou a boate Cangaceiro, onde se apresentaram Tito Madi, Helena de Lima e tantos outros importantes nomes da noite carioca. Na madrugada de 15 de outubro de 1964, a poucos passos da porta dessa boate, morreu o cronista e compositor Antônio Maria, vítima de um enfarte quando se encaminhava para um restaurante ao lado, a fim de trocar um cheque.
Depois do término da boate, foi aberto no local o restaurante La Trattoria, até hoje apreciado por muitos frequentadores. Confirmando sua vocação musical, a rua termina quase em frente à atual Sala Baden Powell, onde ficava o cinema Ricamar.

Pois nessa mesma rua, naquele ano de 1958, residia o fotógrafo Francisco Pereira, que trabalhava na gravadora Odeon e faria a histórica foto da capa do LP Chega de saudade. João e Astrud chegam a seu apartamento para uma pequena reunião, da qual tomam parte poucos amigos. O objetivo maior é escutar o repertório que João prepara para seu primeiro LP, mas também canta muita coisa que será incluída em seus LPs seguintes. Ao som de seu violão, ele canta desde canções mais conhecidas na sua voz, como Chega de saudade e Desafinado, até as mais inusitadas para um bossanovista, como Chão de estrelas, clássico de Silvio Caldas e Orestes Barbosa. A quem pôde presenciar esse momento deve ter ficado claro porque João sempre recusou o rótulo “bossa nova”, preferindo dizer que fazia samba. O que acontece naquela noite é um recital, dos mais notáveis, de música popular brasileira, reunindo coisas antigas e mais recentes.

Para a sorte da história da música popular brasileira e dos fãs de João Gilberto, Francisco Pereira decidiu registar essa audição em um gravador de rolo. É possível até que o motivo fosse João se ouvir depois para melhor definir o repertório do disco. Mas é uma mera suposição. O fato é que a valiosa gravação ganhou cópia que passou de mão em mão, ao longo das décadas, e foi parar na Internet. Em alguns momentos some, em outros volta.

Detalhe da capa produzida para a gravação histórica disponível na Internet

Exigência técnica

São nada menos do que 38 canções, ao longo de quase uma hora e meia. Mais do que uma gravação pirata é um precioso documento que possibilita, por exemplo, confirmar que João Gilberto, em 1958, cantava Preconceito, de Wilson Baptista e Marino Pinto, de modo muito semelhante ao que apresentaria no Festival de Montreux, em 1986, e depois sairia em LP e CD. Portanto, ele já poderia ter incluído um samba de Wilson em um de seus três primeiros Lps, como chegou a fazer com Geraldo Pereira. É provável que a conhecida exigência técnica que impunha a si mesmo o tenha levado a adiar por tantos anos a interpretação desse samba, que jamais gravou em estúdio. No entanto, há pelo menos duas conhecidas gravações ao vivo. Além de Montreux, está também no show em Tóquio, lançado em CD em 2004, o último da sua discografia.

Mas de Marino Pinto não é somente Preconceito que se ouve naquela noite. João Gilberto canta outras duas obras do compositor, a começar por Aos pés da cruz, sua parceria com Zé da Zilda que estará não só no primeiro LP de João, como fará parte do repertório de toda a sua trajetória musical, aparecendo em discos ao vivo, como o Eu sei que vou te amar, de 1994, e o já citado João Gilberto in Tokyo.

Esses dois sambas têm algo em comum: foram lançados na voz de Orlando Silva, em 1941 e 1942, respectivamente. Era a época de maior sucesso do chamado cantor das multidões. João reinventa a seu modo esses sambas, mas não rompe, em absoluto, com o estilo inconfundível de Orlando Silva que muito poderiam ver como ultrapassado. A quem escutar os dois intérpretes nesses sambas poderá enxergar uma ponte que conduz à beleza da canção brasileira e à criatividade contagiante daqueles frequentadores do Café Nice, como era o caso também de Wilson Baptista.

Preconceito pode ser visto como um singelo samba de amor, mas tanto em Orlando Silva quanto em João Gilberto transparece claramente a mensagem que não fugiu a Wilson e Marino ao criá-lo: é um samba que se opõe ao racismo presente na sociedade brasileira, e isso ainda em pleno Estado Novo: “… Não maltrate o seu pretinho/ Que lhe faz tanto carinho/ E num fundo é um bom rapaz/ Você vem de um palacete/ Eu nasci num barracão …”. Para quem entende a bossa nova como sinônimo de mar e céu azul, João já estava em 1958, na casa de Chico Pereira, a dizer que não iria se restringir a esse mundo de alegria alienada.

Uma surpresa

A terceira composição de Marino Pinto apresentada naquela noite permaneceu inédita na voz e no violão de João Gilberto por toda a sua vida. Jamais a registrou em estúdio ou ao vivo. É uma das cinco criações de Marino em parceria com Tom Jobim. Gravada por Silvia Telles naquele mesmo ano de 1958, no LP Sylvia, é das coisas mais bonitas compostas pelos dois e curiosamente ficou pouco divulgada. Trata-se de Mágoa, um samba-canção que nada tem de carregado ou sofrido. É antes uma declaração, ainda que ingênua, de alguém que lamenta o desencontro do amor, mas o faz de maneira sincera e leve. Uma pequena joia guardada pelo tempo: “Você chegou/ Tão tarde na minha vida/ E só encontrou/ Muita mágoa no meu coração/ Você me olhou/ Sorriu com tanta ternura…” Vale a pena reproduzir aqui o manuscrito da letra disponível no acervo do Instituto Antonio Carlos Jobim:

Nesse mesmo acervo, é possível verificar que o maestro pensou em incluir a canção em um disco ou show a partir de uma lista que faz de algumas de suas composições. Mas ele também jamais a interpretou. Resta portanto a bela gravação de Silvinha Telles e uma outra de Nara Leão, que em um de seus últimos discos faz um medley com Caminhos cruzados, de Tom e Newton Mendonça. Mas a gravação de João felizmente se encontra no momento disponível no YouTube:

 

A aproximação entre Marino, Tom e João Gilberto acontece pelo fato de Marino ser vizinho de Ronaldo Bôscoli, num prédio na rua Otaviano Hudson, transversal à rua Tonelero, em Copacabana. Marino morou muitos anos ali, ainda solteiro e depois de se casar, já com quarenta anos de idade, com Zaíra Ferreira Pinto. O apartamento de Bôscoli era bastante frequentado por João e também por Carlos Lyra, que se tornaria parceiro de Marino em duas músicas. Além disso, a ligação entre Marino e Tom pode ter acontecido ainda pelo fato do maestro ter feito arranjos para Dalva de Oliveira, muito amiga de Marino. Este era também um dos fundadores da Sociedade Brasileira de Autores Compositores e Escritores de Música (Sbacem), instituição da qual foi diretor e presidente. Foi Marino quem apresentou Tom a Dorival Caymmi. Os três faziam parte da Sbacem.

É curioso notar que, em Mágoa, Marino utiliza o primeiro verso de um samba-canção que compôs com Herivelto Martins e foi gravado por Isaurinha Garcia em 1951, Cicatrizes. Bonito, mas muito mais carregado de sofrimento. É como se ele quisesse abordar o mesmo tema com Tom experimentando um estilo diferente.

Outras de Marino

Mas João Gilberto não deixaria de lado as canções feitas por Marino com Herivelto. Gravaria a mais famosa delas em seu último disco de estúdio, Voz e violão, lançado em 2001. Nele está sua interpretação para Segredo, um dos maiores sucessos de Dalva de Oliveira e que teve recente regravação de Ney Matogrosso. É das canções mais conhecidas e cantadas na história da música popular brasileira e poderia ser considerada coisa do passado. Suas constantes regravações, incluindo a de João Gilberto, dão prova de que não é bem assim.

Em 1971, quando se encontrava exilado em Londres, Caetano Veloso conseguiu uma licença especial para voltar a o Brasil e participar de um especial, na TV Tupi, com João Gilberto e Gal Costa. Dirigido por Fernando Faro, o programa resultaria num disco jamais gravado. No repertório estava Largo da Lapa, de Marino e Wilson Baptista, lançado por Carlos Galhardo em 1942 e regravado por João Nogueira em 1981.

(Depois de ter publicado este artigo, Eduardo Sonoda, em comentário no Facebook, postou dois links que são documentos importantes e devem ser mencionados. Há um trecho do áudio do programa da Tupi com João Gilberto e Gal Costa cantando Largo da Lapa:


O mesmo samba, em gravação caseira por volta de 1968, aparece com João e a filha Bebel, então com dois anos de idade aproximadamente:

Na década de 1990, no programa Ensaio, da TV Cultura, dirigido por Fernando Faro, Caetano se lembrou desse momento e cantou exatamente Largo da Lapa.

Em seu último show no Theatro Municipal do Rio, em 2008, João Gilberto cantou três canções de Marino Pinto

Uma última interpretação para uma canção de Marino Pinto foi apresentada por João Gilberto em seu derradeiro show no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em 2008. Na verdade foram três composições dele só nesse show: Aos pés da cruz, Preconceito e uma inédita até então na voz de João, o samba Treze de ouro, outra parceria com Herivelto Martins, que foi lançado pelos Anjos do Inferno em 1949. Confira a apresentação neste link:

Após a morte de João Gilberto no último dia 6 de Julho, eu soube por um comentário de Eduardo Sonoda, no Facebook, que há um vídeo de João cantando com sua filha mais nova o único samba composto em parceria por Marino e o grande ator e compositor Mário Lago, Cuidado com o andor. Outro lançamento dos Anjos do Inferno, na década de 1940, que foi regravado por Ignez Perdigão e seus filhos num tributo a Mário Lago. Seria portanto a sétima composição de Marino registrada por João.

O crítico musical Tárik de Souza, em entrevista a mim, por e-mail, durante a preparação de minha tese sobre a obra de Marino Pinto, apresentada ao Departamento de Letras da PUC-Rio, em abril de 2017, disse:

“João Gilberto é um cantor seletivo e criterioso, que age impulsionado por um rigor estético, combinado ao registro emocional fornecido pelas composições escolhidas. O fato dele cantar tantas composições de Marino só comprova o já sabido – trata-se de um grande compositor”.

Quem tiver interesse em saber um pouco mais, a tese está disponível na Internet neste endereço:
http://www2.dbd.puc-rio.br/pergamum/tesesabertas/1313470_2017_completo.pdf

One thought on “Histórias das canções de Marino Pinto no repertório de João Gilberto

  1. Muito obrigado. Sou um dos sobrinhos de Marino Pinto, afilhado da sua esposa Zaira Ferreira Pinto, irmã da minha mãe. Não vou deixar de ler a sua tese. Obrigado por lembrar o Marino que além de bom compositor, era um homem muito bom e um tio carinhoso.

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