Julia Branco tem algo dizer

Nos últimos dias fui tomado pelo impulso de ouvir muitas vezes um álbum de apenas um ano de vida de uma cantora e compositora debutante na carreira solo. Normalmente trabalhos com esse perfil, quando bons, sinalizam para uma trajetória sólida do artista em questão. Tudo passa a ser uma questão de tempo, de maturação. Mas e se esse trabalho trespassar a barreira do bom, ser muito bom, aliás excelente? Falo de Soltar os Cavalos, um exercício libertário da mineira Julia Branco. Emoldurada por sonoridades distintas e sem rotulagem, sua poética intimista trata do universo feminino, seja no arrebatamento de abrir as estrebarias da alma ou no sutil gesto do acolhimento. Os antagônicos sentimentos da coragem e do medo revelam-se em versos como “Sou forte/sou grande/sou do tamanho do medo” logo na expressiva interpretação quase declamada de Julia, que também é atriz, na faixa Sou Forte, o cartão de visitas de um belo álbum. Acredito que Júlia Branco é uma das melhores autoras de sua geração e que merece ser ouvida.

Com produção do requisitado Chico Neves, que já produziu álbuns do Rappa, Paralamas, Arnaldo Antunes e Nando Reis, entre outros, Julia aventurou-se a soltar os corcéis de sua criatividade. E, para tanto, deixou os vocais da banda mineira Todos os Caetanos do Mundo onde permaneceu por dez anos. Ela compunha no grupo, mas não na quantidade que passou a propor a si mesma. “Meu encontro com o Chico Neves, que já havia produzido o álbum da Todos os Caetanos, foi decisivo. Já tinha ficado claro que se fosse gravar um trabalho solo, ele seria o meu produtor e também o diretor musical”. A cantora lembra que não tinha clareza de gravar apenas suas criações. “Havia uma certa insegurança porque  eu não tocava nenhum instrumento (agora estou aprendendo o violão), mas o Chico me fez essa provocação. Tenho uma relação muito forte com a palavra e, como também sou atriz, queria trazer esse lado para o disco. Chico me pediu para apresentar um roteiro, como se fosse uma peça de teatro, com começo, meio e fim. Ideias, textos, mesmo o que não tivesse música, para que a gente criasse algo depois no estúdio. Tudo muito aberto a qualquer tipo de sonoridade”, destaca.

Mergulhando em Águas Claras

No estúdio do produtor em São Sebastião das Águas Claras (MG), a dupla iniciou um longo processo criativo. “Ele é dos mergulhos. Trilhamos um caminho inverso do que se faz normalmente quando você monta uma banda base e ensaia os arranjos. Eu tinha o roteiro ‘encomendado’ pelo Chico e convidamos a Luiza Brina, que é compositora e foi uma grande parceira deste trabalho. Os dois criavam as harmonias à medida que eu ia cantando. Não ouvimos nenhuma demo nesse processo. Foram dias de muita liberdade, para arriscar mesmo. Minha única exigência era não ter guitarra, que é um instrumento que adoro, mas que é muito dominante nas bandas. Queria mostrar só a Julia mesmo e usamos piano, percussões, samplers. Fomos abrindo novos territórios em que eu não havia estado antes”, recorda.

O fio condutor do trabalho de Julia Branco é uma narrativa feminina, voltada para o turbilhão de sentimentos e hormônios que movem as mulheres e, obviamente, tecem os próprios destinos e desígnios do mundo. Pois sabemos que medos, desejos e tudo que nos rege não passa, necessariamente, por gênero. “Uma coisa que o disco fala muito é do acolhimento por conta da vulnerabilidade e isso está relacionado à nossa dimensão humana. Pertence a mulheres homens, a todos”, observa Julia, que só deu conta de que o trabalho estava “muito feminista” depois de concluir o roteiro. “Mas não pensei em fazer um disco feminino ou feminista. Mas estava em cima das coisas que eu tinha escrito, que eram recentes ‘contaminadas’ por um debate que está aí. Foi legal isso ser percebido depois do disco pronto sem que o trabalho tivesse esse direcionamento”, completa. Ouça aqui o álbum na íntegra:

A coragem de expor fraquezas

A vulnerabilidade da mulher e do ser humano em geral tem seu lugar, por exemplo, em Coisas (parceria com Chico Neves que introduziu sobre o texto uma base eletrônica, sonoplastia e a voz de Julia em delay), uma canção-poema que aborda coisas que Julia não consegue fazer ou ser. Ao falar abertamente de suas fobias, frustrações e desejos, a artista se desnuda. Expor a própria fragilidade esteja uma atitude deliberadamente revolucionária num mundo de gente perfeita e feliz como aquele descrito por Fernando Pessoa no clássico Poema em Linha Reta (“Nunca conheci quem tivesse levado porrada / Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo”).

“Eu adoro o assunto do fracasso, adoro que a gente possa falar sobre o fato da gente ser humano e tropeçar, errar, ser meio besta. As pessoas se identificam muito com aquilo. Acredito que gente precisa se empoderar  assumindo nossas fraquezas e limites. As redes sociais e o mundo, de algum jeito, nos levam a achar que a gente é capaz de tudo,  que todo mundo é muito foda e que não deve mostrar seu lado frágil”, comenta. “O  meu feminismo reconhece minhas próprias falhas, que estou aqui aprendendo. Acredito mais nesse caminho. É natural essa conexão. Tenho muitos amigos homens que escutam o disco dizem não se sentir agredidos, que conseguem entender o que digo do lugar da mulher e se sentem incluídos nessa conversa. Acho isso legal e o caminho deve ser esse; não tá dando para segregar tanto”, defende.

Com 11 faixas, Soltar os Cavalos conta com com participações especiais de Letícia Novaes (Letrux), do percussionista Paulo Santos (Uakti) e Uyara Torrente (A Banda mais Bonita da Cidade). Letrux divide com Julia Branco os vocais da lírica 30 Anos (“tô com uma vontade louca/uma vontade enorme/de ser tudo/de dormir/no escuro/de rastejar, de me perder/no ar”).

Influenciada por Arnaldo Antunes

Elogiada por artistas como Arnaldo Antunes e apontada pelo saudoso produtor André Midani como uma grata surpresa da nova geração, Julia rende tributo aos dois. “O Arnaldo é uma uma grande influência pra mim. Nos conhecemos por um acaso. Numa apresentação que ele fez em BH aproximei de uma das produtoras dele e acabei sendo apresentada a ele. Tornou-se amigo. Quando fomos gravar o disco da Todos os Caetanos, havia uma letra minha que o Luis havia musicado (“Pega a melodia e engole”) e sempre  imaginava muito o Arnaldo naquela música. Mandamos a fita pra ele, que adorou e topou participar do disco. Admiro o que ele faz, por esse lugar da palavra, por transitar por outras experiências artísticas, que é algo que busco no meu trabalho. Ele é um poeta visual também. Outra coisa dele que me agrada é que ele tem um lado pop, mas também uma poética muito sofisticada que se conecta com todos. Não é uma arte hermética”, sintetiza Julia, contando que o poeta foi uma das primeiras a escutar o disco antes do lançamento ainda no estúdio. “Outro grande padrinho do meu trabalho foi o André Midani, que me inspirou muito e me incentivou a gravar. Há uns dias estive no Rio (Julia abriu o show de Zeca Baleiro no Circo Voador) e foi estranho saber que ele não estava mais com a gente. Dediquei o show e ele”, diz.

Julia Branco merece ser ouvida (e vista)

Julia Branco tem algo a dizer e, como disse acima, merece ser ouvida. E vista. Parte de Soltar os Cavalos recebeu uma versão vídeo-álbum. Patrocinada pela Natura Musical, Julia produziu cinco clipes, cada um dirigido por uma mulher. “Eu já estava totalmente imersa no trabalho e desejava ter a visão de outras mulheres e foi legal porque cada uma das diretoras, além de dirigir o seu episódio, assumiu uma outra função no projeto como um todo assumindo a direção de fotografia ou de arte dos outros vídeos estabelecendo uma troca muito rica”, conta. Essa iconografia de movimento, sons e palavra reforçam a narrativa de algo que Julia define como corpo-canção que se expressa numa dramaturgia própria mas que se entrelaça.

Estão no vídeo-álbum Sou Forte, Coisas, estrela (“nunca pensei que seria cavala/num galope certeiro saltando essa vala/eu vou/nunca pensei que seria estrela/no centro daquela mandala/eu sou”), 30 Anos, Eu sou Mulher (“eu quero mais do que dois goles de café/do que um beijo da tarde/eu quero mais (…)/eu quero mais do que uma casa, uma criança”), Meu Corpo (“aqui dentro do meu corpo/ moro eu /morro eu /mando eu”).  A próxima canção a ganhar sua versão em vídeo será a provocativa Eu Toco em que Julia responde aos que lhe perguntam sobre sua condição de cantora não-instrumentista (“Você pergunta se eu toco/ou se eu só canto” (…) / eu toco corações/eu toco almas/eu toco uma para mim/outra pra você/eu toco o terror/eu me toco”). Confira o vídeo-álbum:

Vivendo na ponte aérea entre BH e São Paulo, Julia Branco não interrompe o processo criativo e segue compondo, mas ainda não sente o desejo de desapear dos possantes cavalos que libertou com seu álbum. Ainda pensa em mostrar versões remix de algumas criações do CD e gravar uma versão acústica de alguma outra. Quer levar o show ao Nordeste e volta a se apresentar no Rio em 4 de outubro. Recomendo a vocês que reservem a data.

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