Letieres Leite e uma obra de arte de todos os tempos

Letieres Leite e os músicos da Orkestra Rumpilezz - Foto João Atala
Capa do álbum 'Moacir de Todos os Santos', de Letieres Leite e Orkestra Rumpilezz
Capa do álbum ‘Moacir de Todos os Santos’, de Letieres Leite e Orkestra Rumpilezz

De algum lugar do céu onde ficam os artistas os maestros Letieres Leite e Moacir Santos contemplam a obra de arte póstuma deixada pelo músico baiano em homenagem ao genial legado do colega pernambucano. “Moacir de Todos os Santos” (Rocinante), o último álbum gravado por Letieres com sua inventiva Orkestra Rumpilezz já pode ser ouvido nas plataformas digitais ou no LP que traz um depoimento de Gilberto Gil em sua contracapa.

“Letieres Leite reuniu em Salvador um grupo seleto e eclético de músicos, uns vinte e poucos, negros, mestiços e brancos – todos eles associados às vertentes mais populares ou mais clássico-eruditas da música que se faz na Bahia. Egressos das orquestras de concertos, dos conjuntos de baile, dos terreiros de candomblé, dos clubes musicais cultivadores do jazz e das vanguardas mais recentes do pop internacional, esses músicos se juntaram sob a regência de Letieres – ele, multiartista interessado em promover resgates e impulsionar avanços na música da Bahia e do Brasil”, resume Gil, ao comentar a importância de Letieres para a música brasileira contemporânea e, por que não dizer, da eternidade.

Na certeza da perenidade deste trabalho, o canal Arte 1 estreou em sua grade documentário inédito, com farto material bem editado ao longo de 25 minutos, sobre a gravação do álbum. O filme, com reprises ao longo da semana, foi dirigido por João Atala, Michael Atallah e Sylvio Fraga e traz depoimentos diversos, entre eles do saudoso Letieres.

O maestro partiu abruptamente em outubro, aos 61 anos, quando o álbum estava sendo mixado. O repertório contempla sete dos dez temas de ‘Coisas’ (1965), estreia fonográfica do maestro, compositor, arranjador e multi-instrumentista pernambucano Moacir Santos (1926-2006). Raul de Souza (1934-2021) toca o seu magnífico trombone na “Coisa nº 4” e Caetano Veloso participa da faixa “Nanã – Coisa nº 5” (parceria de Moacir com Mário Telles), cantando em inglês, segunda língua de Moacir, que morou por décadas na Califórnia.

No texto da contracapa, Gil continua: “Inspirado no grande mestre pernambucano Moacir Santos, que o antecedera em algumas décadas nesse mister de estimular a fusão mais abrangente e profunda das linguagens nas músicas afro-americanas (a estadunidense, a cubana e brasileira), Letieres realizou, no breve período que a vida lhe concedeu, um trabalho de grande envergadura que deixa registrado agora neste disco que nos chega às mãos”.

‘Moacir de Todos os Santos’ é um sonho que começou em 2018, nas gravações de “Enigma Lexeu” (Rocinante, 2019), álbum do maestro e o quinteto que levava seu nome. Letieres comentou com Sylvio sobre um show que havia feito com temas de Moacir. Sylvio o convidou para transformar o espetáculo em disco pela sua gravadora e o baiano topou na hora.

Mas foi necessário ampliar o estúdio na Serra Fluminense para oferecer condições ideais à Rumpilezz de gravar. O deck aberto que havia atrás do estúdio ganhou mais três salas, batizadas como Rum, Pi e Lé, os atabaques que dão nome à inventiva orquestra criada à imagem e semelhança do talento do Letieres Leite.

Pepê Monnerat, Sylvio Fraga e Letieres durante a produção do álbum - Foto: João Atala
Pepê Monnerat, Sylvio Fraga e Letieres durante a produção do álbum – Foto: João Atala

Sylvio Fraga e Pepê Monnerat, os sócios da Rocinante (selo que nasceu com a vocação de tornar-se grife musical), não pouparam energia para registrar as interpretações da Rumplillez da melhor forma possível. Microfones adicionais foram alugados para que todos os instrumentos da orquestra formada por naipes de metal e percussivos tivessem uma captação em nível máximo.

Pepê decidiu botar as três máquinas de fita, de 24 canais, para trabalhar ao mesmo tempo, algo até então inédito em gravações brasileiras. Tudo escrito e ensaiado, agora era a hora de aperfeiçoar a performance dos 22 músicos, – o maestro incluído, embocando a sua flauta em sol – da Rumpilezz.

“Letieres escreveu os arranjos deste disco em um só mergulho, sem consultar os originais, de tão profundamente que conhecia o ‘Coisas’, do Moacir. É um disco absolutamente raro em muitos sentidos. A conexão entre maestros negros geniais, a percussão com papel de protagonista numa orquestra, o conhecimento profundo dos ritmos das matrizes africanas permeando a construção dos sopros cosmopolitas, a dança como guia”, comenta Sylvio. “E todo trabalho de Letieres é intrinsecamente ativista, colocando muitos pingos nos is em relação à importância incontornável que a música dos africanos escravizados tem na música brasileira. Não tenho dúvida que Letieres nos legou, com seu último disco, um dos trabalhos mais importantes do novo século na música brasileira”, aposta.

“Moacir de Todos os Santos” foi concebido, arranjado e regido por Letieres Leite, dirigido artisticamente por Letieres e Sylvio Fraga, produzido por Letieres, Sylvio e Pepê Monnerat e gravado por Pepê e Edu Costa no Estúdio da Rocinante, em Araras, distrito de Petrópolis (RJ).

Uma vez com todos os áudios prontos, o disco foi misturado por Pepê – exceto a faixa “Coisa nº 5”, misturada por Michael Brauer – e masterizado por Eric Boulanger (The Bakery).

Letieres Leite executa sua flauta em sol no estúdio - Foto João Atala
Letieres Leite executa sua flauta em sol no estúdio – Foto João Atala

A Orkestra Rumpilezz é formada por Luizinho do Jêje (atabaques Rum e Rumpi, agogô e efeitos), Gabi Guedes (atabaques Rum e Rumpi e agogô), Tiago Nunes (timbau, atabaques Rumpi e Lé, agogô e caxixi), Emerson Taquari (pandeiro, surdos, timbau, atabaque Lé e caxixi), Jorge Wallace (surdos, atabaques Rumpi e Lé, agogô e timbau), Ícaro Sá (atabaques Rumpi e Lé e timbau), Kainan do Jêje (atabaqueria), Rowney Scott e Leo Rocha (saxofones tenor e soprano), André Becker e Paulo Andrade (saxofone alto e flauta), Vinícius Freitas (saxofone barítono), Fernando Rocha (tuba), Adaílson Rodrigues (trombone baixo), Rudney Machado (trompete e flugelhorn), Guiga Scott (trompete e flugelhorn), João Teoria (trompete e flugelhorn), Danilo Brito (trompete e flugelhorn), Gilmar Chaves, Hugo Sanbone e Juracy Almeida (trombones).

A quem interessar possa (e deve) a flauta em sol vibrante na coleção de temas gravados é executada com maestria por Letieres Leite.

“Só um gênio louco como Letieres para se aventurar a reler ‘Coisas’, mas tenho a impressão que o maestro teria gostado. Leti colocou o dendê da baianidade africana na música de Moacir de uma maneira respeitosa e contemporânea”, observa o flautista e saxofonista Rowney Scott, um dos solistas da “Coisa nº 2”, primeiro single do novo trabalho. O tema aterrissou nas plataformas de streaming em 8 de dezembro de 2021, quando Letieres completaria mais um ano de vida – vida abundante que jorra neste álbum já histórico por tudo o que ele representa.

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