Makely Ka e o fluxo das águas numa viola

Makely Ka - Foto: Rosa Antuña

Instrumento derivado da alaúde árabe, a viola nasceu na Península Ibérica. Cá chegou nas caravelas, foi tocada e apreciada na corte de Pedro I, mas reinou mesmo nas folias de reis, nos folguedos e nas toadas cantadas no coração do Brasil. Músico requisitado que já gravou com Lô Borges, Samuel Rosa, Titane, Ná Ozzetti e José Miguel Wisnik, entre outros, Makely Ka é um estudioso desse instrumento de dez cordas e lança “Rio Aberto”, álbum instrumental que, mesmo sem letras, deixa as águas fluírem de forma a escrever uma manifesto sonoro em defesa do meio ambiente, da preservação de nossos biomas.

Disponível em formato físico e digital o novo trabalho do músico, lançado pela Kuarup, surgiu da curiosidade e interesse do artista pela sonoridade e pelas possibilidades da viola de 10 cordas a partir de uma viagem pelo Vale do Urucuia, no noroeste do estado de Minas Gerais, onde aprendeu algumas afinações alternativas como a que chamam “rio abaixo”, muito utilizada pelos violeiros daquela região.

Essa afinação, também chamada de “sol aberto”, deu origem ao nome do disco. De suas 13 faixas 12 são autorais, exceto “Encontro das Águas”, de Tavinho Moura, que fecha o trabalho. As assinadas por Makely levam nomes de rios, cursos d’água que costuram elementos da geografia, da história e da literatura brasileira. Ligam, por exemplo, o sertão de Guimarães Rosa aos sertões de Euclides da Cunha, numa viagem pelo tempo e espaço e que ainda pode contemplar o universo mítico do trovador baiano Elomar. Temas experimentais que dialogam com a tradição popular do instrumento.

“Tento simular o movimento desses rios, os sons de suas corredeiras, quedas d’água, seus poços profundos, remansos, a barra ou foz, onde eles encontram o grande rio, os animais que frequentam suas margens e dependem dele para viver”, conta Makely Ka, que você vê em ação aqui:

Boa parte dos rios que dão nomes às faixas são afluentes do São Francisco, aquela veia aberta de brasilidade que corre das Geraes ao mar, dando cor e viço ao sertão nordestino. Há algumas relações entre as faixas. O Rio do Sono por exemplo, que banha o vilarejo do Paredão de Minas (local onde aconteceu a batalha épica entre o bando dos Hermógenes e os Ramiro comandados por Riobaldo Tatarana no romance “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa) deságua no Paracatu.

“A harmonia de um entra nas águas do outro, alguns movimentos se repetem, o ritmo fluente das corredeiras rápidas do rio de Morfeu se torna mais arrastado quando se encontra com o Paracatu. Um incorpora o outro, mas assume algumas das suas características. A síncope simula o encontro, a força das correntes contrárias medindo forças para afinal confluírem no mesmo fluxo”, ensina Makely. A sabedoria das águas vai movendo as cordas e é lindo esse fluir.

Também chamada de viola caipira, a viola de 10 cordas tem cinco pares de cordas, a estrutura do corpo é semelhante à de um violão, mas ela possui um ressonador metálico, que projeta o som através de pequenas bocas dispostas no tampo. É muito utilizada pelos repentistas e cantadores nas feiras populares em todo o nordeste brasileiro. “A que uso é um modelo de sete bocas fabricada pela Del Vecchio em 1975”, diz Makely que em “Rio Aberto” presta tributo a mestres como Manoel de Oliveira, Renato Andrade, Tavinho Moura, Almir Sater, Heraldo do Monte, Paulo Freire e Ivan Vilela, que são suas principais referências no universo da viola.

A regravação de “Encontro das Águas”, canção que Makely Ka conheceu através de Almir Sater, ganha no álbum um sentido ampliado, tornando-se a confluência de todas as águas dos rios abertos no processo criativo de Makely. Num momento em que estamos na iminência do agravamento de crises hídricas, com rios ameaçados por mineradoras e empreendimentos imobiliários, o quinto álbum deste violeiro piauiense de 46 anos fala alto.

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