Marina Lutfi em uma outra dimensão

Marina Lufti
Capa do álbum 'Outra Dimensão', de Marina Lufti
Capa do álbum ‘Outra Dimensão’, de Marina Lufti

Imagine uma carreira musical que se move como um rio, desde sua nascente num córrego, formar seu próprio leito e desaguar num mar de possibilidades. Marina Lutfi nasceu nesta nascente e deixou mansamente que as águas da canção a levassem. “Outra Dimensão” (selo Cacumbu) é o trabalho fonográfico de estreia da artista que sempre era vista nos palcos acompanhando o pai, Sérgio Ricardo (1932-2020), um gigante da música, das artes plásticas e do cinema, seja como compositor, cantor, músico, pintor, ator ou diretor.

Quis o destino que o polivalente artista não visse o desabrochar de sua cria. Em parte, porque as oito canções que integram o repertório de “Outra Dimensão” foram construídas com calma e artesania ao longo dos últimos anos.
Fiel guardiã da rica obra de seu pai, Marina estava ao lado de Sérgio Ricardo em várias frentes seja como designer, produtora ou cantora.

“Quis dar um mergulho mais fundo no cantar, expressão vital pra mim. A ideia foi buscar um caminho mais próprio nessa dimensão da música, com referências para além do meu pai”, adianta a artista, ao falar do disco que chegou às plataformas digitais na última semana.

“Em algum momento de 2013, finalmente tomei coragem de afirmar: quero fazer um álbum solo. Quero misturar algumas canções de ídolos, de referências musicais. Era muito importante me ouvir cantando obras que não fossem só do meu pai. Ele estará lá, sempre cantei e sempre vou cantar Sérgio Ricardo. É uma honra tão imensa ser filha desse mestre, um ensinamento musical, poético, visual que me surpreende a cada momento. É ponto de partida, de chegada, é cinema na música. Mas eu também queria buscar novas referências, experimentar repertórios, entrar em outras dimensões musicais”, diz.

Com o conceito firmado, Marina Lutfi convocou o músico Flávio Mendes, arranjador e violonista de enorme sensibilidade que foi o diretor musical dos últimos anos da carreira de Bibi Ferreira. “Começamos a nos encontrar em meados de 2013, tocando, ouvindo referências, pesquisando. Era o início da fase de arar a terra para receber algumas sementes. Eu trazia ideias de clima, de desejos de sonoridades e Flávio somava. Esses encontros me traziam tanta felicidade que me sentia lavando a alma”, conta.

Um desejo antigo da cantora era gravar músicas do amigo Julio Dain. “Cheguei a fazer capa de disco para ele como designer e acabei conhecendo mais as suas canções. Fiquei tão impressionada com a originalidade das melodias, a poética das letras, harmonias dissonantes e ricas”, recorda a cantora, que pinçou a faixa-título e “No Meio da Escuridão”.

Outro bom compositor da nova geração, Rodrigo Maranhão, aparece “Milonga”. De Arnaldo Antunes e Péricles Cavalcanti, Marina gravou “Quase Tudo”. “Eu falava para o Flávio que tinha um desejo enorme de gravar João Donato, um ídolo para mim. E ele me mostrou ‘Ahie’. Foi amor à primeira ouvida”, destaca.

Marina Lufti e o pai, Sérgio Ricardo - Foto: Divulgação
Marina Lutfi e o pai, Sérgio Ricardo – Foto: Divulgação

Da obra de Sérgio Ricardo, Marina revela que sempre quis gravar “Esse Mundo é Meu”, uma parceria com Ruy Guerra, que fez a letra; “Barravento”, inspirada no filme homônimo de Glauber Rocha (na faixa, Sérgio Ricardo gravou o contracanto no encerramento da música); e “Cacumbu”. “Essa é uma marca pra mim muito forte. Gravei em 2008 no disco dele que produzi. É o nome da minha empresa, é literalmente uma marca pra mim. Achei que seria fundamental”, justifica.

Escolhido o repertório, Marina decidiu testá-lo ao vivo em apresentações ao vivo no saudoso bar Semente, na Lapa, ao longo de 2014. “Foram várias apresentações, um super exercício prático para mim. Ali desenvolvi melhor a interpretação, a condução do show como artista principal. Porque até então eu participava dos shows do meu pai. Agora era outra dimensão: meu show solo.

As gravações do álbum tiveram início no ano seguinte. “Organizei a produção e Flávio fez a direção musical, tocou violão, guitarra e criou os arranjos de seis faixas. Para ‘Ahie’ e ‘Barravento’, convidei o grande amigo e super músico Henrique Band para arranjar. Ambas ganharam belíssimos naipes de sopro” com o próprio Band, Everson Moraes, Diogo Gomes e Levi Chaves.

Para a instrumentação das faixas, Marina Lutfi convidou grandes músicos: Guto Wirtti (contrabaixo), Carlos Cesar (bateria e percussão), Marcelo Caldi (acordeon), Marcos Suzano (percussão), Lui Coimbra (violoncelo), Alexandre Caldi (flauta e sax), Carlos Pontual (baixo, bateria e guitarras), Domenico Lancelotti (MPC) e o irmão Jorão Gurgel (guitarra). “Um timaço”, festeja a cantora.

O processo de feitura do álbum, conta Marina, foi pausado em 2018, 2019 e 2020. “Tive que pausar todo o processo para produzir o novo show do pai, Cinema na Música de SR. Sabia que era urgente, que era importante priorizar essa dedicação à sua obra. Em 2019 chegamos a iniciar a mixagem e, entre imensas pausas, papai começou um processo de complicação de saúde. Em 2020 me dediquei completamente à sua saúde e à sua obra com o acervo Sérgio Ricardo Memória Viva. Papai nos deixou em 23 de julho do ano passado. Exatamente um ano depois de sua partida do pai, senti que era hora de Outra Dimensão começar a nascer, lançando o single de ‘Barravento’. Gravei, regravei, sofri, me emocionei, busquei a verdade do que eu queria passar e, em certo momento, entreguei. É o primeiro. Vamos nessa, sem medo”, afirma, de coração aberto.

“Outra Dimensão” merece uma audição atenta. O rio chegou ao mar.

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2 thoughts on “Marina Lutfi em uma outra dimensão

  1. Que matéria bem feita! Marina é isso tudo: a cantora que consegue ser fiel ao pai, seu parceiro inseparável, ao mesmo tempo que de impõe como personalidade na música, com sua identidade e seu jeito meigo de tratar seu repertório. Parabéns! Ganhamos todos! Viva Marina!

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