Nelson sargento – A resistência agoniza, mas não morre*

Nelson Sargento

Por Maninho Pacheco

Foi o amigo de toda uma vida, Zé Roberto, quem desceu aos detalhes: foi ali, na Rua da Constituição, Centro do Rio, na inauguração de um bar chamado Constituinte onde, meninos, nós vimos. Eu e o Zé vimos e tivemos a honraria suprema da companhia de Nelson Sargento, sentando à nossa mesa. Estávamos, provavelmente, em 1986, véspera da instalação dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, em fevereiro do ano seguinte. Fomos convidados por minha mãe e seu então companheiro, o arquiteto José Leal, meu queridíssimo Biu, para a inauguração do bar.

Mãe e Biu eram amigos do Nelson, daí termos dividido a mesa com ele. No alto de sua humilhante memória, Zé me reporta Nelson ter contado infindáveis histórias. Desmemoriado militante, não lembro de nenhuma delas. Os causos eram intermediados pela insistente cobrança que Nelson fazia ao Biu para que ele desencantasse o projeto do túmulo verde e rosa de Nelson Cavaquinho, conforme o prometera. (Biu, fique esperto! Parafraseando o Zé do Caixão, à meia-noite os nelsons Sargento e Cavaquinho irão encarnar no teu pé.)

Nelson Sargento
Nelson Sargento foi estimulado a pintar pelo jornalista Sergio Cabral – Foto: Reprodução

Naquela inauguração do Constituinte havia uma exposição de pinturas do Nelson. Acho (o Zé tira a teima depois de ler este texto). Foi Sérgio Cabral (o pai, bem entendido) quem estimulou Nelson a tornar-se pintor de telas. Até então, já sambista consagrado, só pintava paredes, como as do apartamento de Cabral, em Copacabana, quando, então, recebeu do amigo e crítico de música o estímulo para migrar para as artes plásticas, em benefício das quais legou um estilo naïf de extrema delicadeza e beleza.

Nelson foi mais que um erudito do samba-raiz-resistente e um pintor naïf incidental. Foi, antes de tudo, – e, sobretudo – mangueirense de coração (ainda que salgueirense de nascimento), e vascaíno, claro. Mas foi mais do que tudo isso, também. Nelson Sargento povoou a cultura e as artes em todas as suas extensões. Escreveu livros (“Prisioneiro do mundo” e “Um certo Geraldo Pereira”), artigos sobre o universo dos morros e da música (há em “Piauí” um delicioso texto de sua autoria sobre a permanência do cigarro na MPB < https://url.gratis/gZQIg>), foi ator (“O Primeiro Dia”, de Walter Salles e Daniela Thomas, “Orfeu” de Cacá Diegues), autor de trilha de cinema (“Nélson Sargento da Mangueira” de Estêvão Pantoja) e sabe-se lá mais o quê.

“A vida só não é boa para quem não sabe esperar”
(Nelson Sargento)

A propósito, sabe-se exatamente o quê: foi defensor intransigente da resiliência do samba em letras e melodias como “Agoniza Mas Não Morre”, lançado por Beth Carvalho no disco “De pé no chão”, de 1978. Ali, Nelson defendia o samba num momento em que o Brasil iniciava sua reabertura política, sua reconstrução como país, seu reencontro cultural e o acerto de contas como nação.

A existência de Nelson encerra o conhecimento acumulado por anos da sociologia clássica brasileira: de Sérgio Buarque a Freyre, de Darcy a Candido, de Florestan a Fernando Henrique. Negro, filho de uma guerreira lavadeira e um cozinheiro omisso (morto em decorrência de uma gangrena provocada por água fervente derramada de uma panela sobre seus pés), teve por padrasto um imigrante português, com quem aprendeu fado e samba. Sempre morou em morros. No do Salgueiro, até aos 10 anos, e no da Mangueira, por toda a vida. Por nascido em 1926, descende da linhagem original dos desvalidos e explorados soldados remanescentes da brutal Guerra de Canudos, que se instalaram no Morro da Providência, na Zona Portuária do Rio, dando origem à primeira favela carioca. A esses, juntavam-se ex-escravos – sobretudo baianos – libertos das lavouras, após 1888, e negros livres urbanos, que fizeram do Rio sua morada.

O samba, então, surge como resistência nas insurgentes favelas e decadentes cortiços e os sambistas logo passam a ser fortemente perseguidos como malandros e vagabundos e, naturalmente, reprimidos. Tudo isso está em Nelson, que desperta essa identidade de origem e resistência ao contato na Mangueira com o cancioneiro de Carlos Cachaça, Cartola e Geraldo Pereira.

Voltando a 1986, não me recordo, mas intuo, que estávamos felizes na inauguração daquele bar cujo nome homenageava o momento histórico que este país atravessaria: sua reconstrução como nação e reencontro como pátria, através da elaboração de uma nova Constituição, a qual o timoneiro Ulysses chamaria de cidadã e só seria promulgada dois anos mais tarde. Estávamos otimistas, é certo. Naquele mesmo dia conseguira meu primeiro emprego profissional como jornalista, no Sindicato dos Securitários do Rio, mesmo ainda estudante de jornalismo. Lembro disso porque que só cheguei ao bar Constituinte após reunião com a recém-eleita diretoria do Sindicato, que decidiu por minha contratação. O bar estava instalado no segundo andar de em um prédio histórico. Subi a escadaria de madeira de lei, entrei no recinto, avistei o Zé e fiz-lhe um gesto de vitória por ter conseguido o emprego.

Naquele bar, em 1986, ao lado de Nelson Sargento, estávamos felizes e otimistas. Orgulhosos do feito histórico de ter tirado nosso país das trevas. Passados anos de ditadura e reconstrução democrática, a resistência triunfou contra o arbítrio. Um novo Brasil se abria. Gentil, fraterno e solidário. Passados 35 anos, Nelson Sargento não está mais entre nós. O bar Constituinte já não mais existe há anos. Minha mãe é apenas memória. Meu irmão morreu. Felicidade e otimismo são peças raras e caras, dissipadas pela brutalidade. Mas desconfio que, da memória de nossa resistência resiliente de três décadas atrás, devemos nos transmutar, resistentes. Os tempos pedem assim. E assim como o samba de Nelson, nossa resistência agoniza, mas não morre.

*Aos queridos zés, Roberto e Leal

 

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