Quem tem medo de Nara Leão?

Nara Leão

Por Maninho Pacheco

Em 1971, um vulcânico e inquieto Glauber Rocha encontrava-se em Munique. De lá, enviou ao sempre querido amigo de Cinema Novo Cacá Diegues, carta com suas já tradicionais digressões sobre o Brasil, o Velho Mundo, cristianismo e civilização ocidental. Glauber e Cacá estavam exilados. Glauber, sem um porto seguro. Transitava de Cuba à antiga URSS. Cacá, com a mulher Nara Leão, em Paris. Na carta, Glauber abriu um raro parêntesis para comentários pessoais. Disse a Cacá que ele e Nara jamais poderiam se separar. Que o casamento dos dois representava a perfeita confluência do Cinema Novo com a Bossa Nova. Escreveu Glauber: “Amo Nara Leão. Nara e Narinha. Essa mulher sabe tudo do Brasil 1964. Essa mulher é a primeira mulher brasileira. Essa mulher não tem tempo a perder. Atenção: ninguém pode com Nara Leão”. Essa última frase tornou-se icônica.

Ano passado, o jornalista Tom Cardoso utilizou a frase glauberiana para dar nome ao livro biográfico dedicado a Nara. Antes de Cardoso, os também jornalistas Sérgio Cabral e Daniel Lopes Saraiva já haviam publicado, em biografia, seus olhares sobre a pessoa e trajetória da cantora. Mas, em se tratando de Nara, o tema nunca se esgota.

Há quinze dias, uma produção do selo Conversa.doc, formado por profissionais que trabalham no programa “Conversa com Bial” – inclusive o próprio Pedro Bial, que foi genro de Nara – lançou na plataforma Globoplay a série “O canto livre de Nara Leão”, de Renato Terra (“Narciso em Férias”, de 2020; e “Uma Noite em 67”, de 2010). São cinco episódios (“Bossa Nova”, “Opinião”, “A Banda”, “Quero que Vá Tudo pro Inferno” e “Fiz a Cama na Varanda”) que cobrem a nada ingênua multiplicidade artística, ideológica e musical de Nara.

De anjo, a tímida Nara só tinha o rostinho delicado, emoldurado pelo corte de cabelo Chanel. Assim como seu amigo querido e inquieto Glauber, Nara foi uma explosão libertária e inconformista em gestos, decisões e atitudes. Sem nunca perder a voz diáfana, sem nunca alterar o tom de uma voz, sempre em uma escala abaixo das demais.

A adolescente Nara Leão no apartamento onde nasceria a Bossa Nova - Fotos: Reprodução
A adolescente Nara Leão no apartamento onde nasceria a Bossa Nova – Fotos: Reprodução

O gene libertário dominante estava no DNA da família. Seu pai Jairo, bem-sucedido advogado capixaba, que se transfere do Espírito Santo para Copacabana, criou para o mundo uma Nara sem amarras, em estado pleno de sua pré-adolescência. Narinha, a menina que a irmã Danuza apelidara de Greta Garba, cresceu. Aprendeu os primeiros acordes de violão aos 15, na academia de Carlinhos Lyra e de seu amigo de toda uma vida, Roberto Menescal. Valendo-se da ampla liberdade recebida dos pais, achou ser uma boa ideia estender as aulas para a sala de 90 metros quadrados do apartamento em que morava, no terceiro andar do Edifício Champs-Élysées, Avenida Atlântica, 2856. O embrião da Bossa Nova se formaria ali. Naquele endereço. Aos encontros de Nara, Lyra e Menescal, foram se agregando integrantes de uma tribo jovem, moderna e sofisticada, filha da revolução cultural e estética dos anos Juscelino Kubitschek. Pelo salão de d. Tinoca, liberalíssima mãe de Nara, marcavam ponto dia sim, outro também, os semi-imberbes Chico Feitosa, Bebeto Castilho, Luis Carlos Vinhas, Luizinho Eça, os irmãos Castro Neves, Nelson Motta, Eumir Deodato. Aos poucos, a poderosa energia criativa e solar daqueles jovens músicos passa a atrair também os já medalhões Tom, Caymmi, João Gilberto, Vinícius e quem mais fosse.

Os joelhos de Nara Leão, uma fixação dos machos-alfa dos naos 1960 que a cantora sempre abominou
Os joelhos de Nara Leão, uma fixação dos machos-alfa dos anos 1960 que a cantora sempre abominou

Em meio àquela explosão de testosterona de jovens em ponto de ebulição criativa, Nara reinava absoluta. Foi justamente essa realeza que lhe valeu o epíteto de “musa da Bossa Nova”, título que detestava. Assim como odiava a fixação dos machos-alfa por seus joelhos. Achava aquilo de um ridículo inominável. E não foi outro macho-alfa se não o irresistível predador Ronaldo Bôscoli quem conquistou a primazia de seu adolescente coração de 15 anos. Bôscoli já passava dos 25, era o decano do grupo. Compositor, produtor e jornalista, Bôscoli foi quem tirou a garotada do apartamento de Copa para as primeiras apresentações públicas.

A primeira delas ocorreu na Faculdade de Arquitetura da Universidade do Brasil, na Praia Vermelha. A segunda, foi a verdadeira certidão de nascimento da Bossa Nova: meados de 1958, num velho casarão da rua Fernando Osório, no Flamengo. Ali ficava o Grupo Universitário Hebraico, associação de estudantes dirigida pelo jornalista Moysés Fuks. Frequentador do místico apartamento de Nara, foi Fucks quem convidou a rapaziada para a apresentação no Hebraico e foi ele quem ditou para a secretária escrever a giz em uma tabuleta: “Hoje – Sylvia Telles e um grupo bossa nova”. Estava batizado o movimento. E Nara, claro, estava lá. Mas não por muito tempo.

O amigo Carlos Lyra introduziu Nara num universo musical mais amplo e ligado a causas sociais
O amigo Carlos Lyra introduziu Nara num universo musical mais amplo e ligado a causas sociais

No início da década de 1960 algumas produções sinalizam o surgimento de uma dissidência no movimento bossanovista. Numa tentativa de politização e popularização da bossa nova, alguns compositores e intérpretes aderiram a uma postura de engajamento político. Esse viés foi ganhando mais contundência à medida que tais artistas se aproximaram de setores da esquerda brasileira e do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (o CPC da UNE). Carlos Lyra foi um dos primeiros a optar pelo engajamento em detrimento do “amor, do sorriso e da flor”. Nara via com interesse, curiosidade e empolgação a produções desses artistas dissidentes do grupo original da Bossa Nova. A turma contava com Nelson Lins e Barros, Sérgio Ricardo, Geraldo Vandré, Vinícius de Moraes e Baden Powell, além do Lyra.

Tudo poderia ter sido diferente não fosse a traição de Bôscoli com a dublê de femme fatale e musa da dor de cotovelo Maysa. Anunciada em cadeia nacional de rádio e TV, a traição foi a pá-de-cal que sedimentou em Nara a decisão de romper com a ala raiz do movimento, liderada por Bôscoli. A partir daí, Nara dá uma guinada existencial, ideológica e musical. No quesito emocional, a fila andou rápido, como se lê na sequência.

Através de Lyra, Nara mergulha no universo criativamente febril e intelectualmente incendiário do Cinema Novo. Conhece Glauber, que já houvera dirigido sua irmã Danuza em “Terra em Transe”, e de quem se tornaria uma entusiasta amiga até a morte estúpida e precoce do cineasta, em 1981, causando-lhe uma dramática devastação emocional. Entre os cinemanovistas namora o luso-brasileiro nascido em Moçambique, Ruy Guerra. A vida da burguesinha da alta classe média da Zona Sul carioca jamais seria a mesma. A troika formada por Lyra, Vinícius mas, sobretudo, Guerra, faz a cabeça de Nara para que prestasse atenção a um outro Brasil que se desenha além dos limites do Rebouças. Faltava a ela atravessar o túnel e subir o morro.

Assim o fez. Do lado de lá do Rebouças Nara descobre que há vida fora do entorno da Avenida Atlântica. Naquele momento, Nara acorda para um mundo novo de vida abundante, pulsante, musical. Mas, também, sofrida, submersa na grossa camada de contradições sociais de um país de miseráveis. Nara vibra com o que vê. Passa a questionar sua própria origem burguesa e, de quebra, a estética e a produção cultural de seus ex-parceiro de Bossa Nova, uma juventude despolitizadamente solar, circunscrita na bolha de Copacabana, Ipanema, Leblon e adjacências, sem olhos para a realidade como ela é. Uma realidade distante dos tons róseos e azuis do amor, do sorriso, da flor e do barquinho.

Nara Leão, Zé Ketti e João do Vale no icônico show 'Opinião, um soco na cara da ditadura que deu à cantora a aura de perseguida política
Nara Leão, Zé Ketti e João do Vale no icônico show ‘Opinião, um soco na cara da ditadura que deu à cantora a aura de perseguida política

Ao subir os morros e passar a frequentar o mítico bar e restaurante Zicartola – sempre pelas mãos de Lyra – conhece Zé Ketti e Cartola. Elton Medeiros e Nelson Cavaquinho. Seu universo musical se expande. O resultado disso são o lançamento de seus três primeiros álbuns em espaço de tempo de dois anos: “Nara” (com uma das capas mais emblemáticas da gravadora Elenco) e “Opinião de Nara”, ambos de 1964, e “O Canto Livre de Nara”, de 1965. Três discos com um espetáculo-manifesto no meio, o show “Opinião”, que carimba Nara como elemento ativo, feroz e nocivo ao bem-estar comum da ditadura. O radar dos militares passa a seguir seus passos. Com a autoridade de um estudioso da música e de quem viveu intensamente aqueles tempos, Nelson Motta assegura que a música popular brasileira nasce naquele conjunto de obras somado ao musical “Opinião”.

Sob intensa patrulha dos amantes da Bossa Nova, Nara dá de ombros, corta seus últimos vínculos com a turma bronzeada que frequentava seu apartamento em Copa e mergulha de cabeça no engajamento político, como nenhuma outra artista nacional ousara ter feito, até então. Em 1966, concede entrevista bombástica ao Diário de Notícias esculhambando as Forças Armadas, que “não serviam para nada”, disse. Além disso, defendeu a estatização de empresas privadas, o acesso dos trabalhadores aos meios de produção y otras cositas mas.

Namorando o poeta Ferreira Gullar e amicíssima do dramaturgo Vianinha, além de Glauber, Nara está mais alinhada do que nunca com a turma do CPC da UNE, que coordena uma febril linha de montagem de produção de “músicas de protesto”, Nara usa sua voz frágil e seu canto forte para denunciar as mazelas sociais. Surge a expressão “esquerda narista”, o equivalente à música de protesto ao epíteto “musa da Bossa Nova”. E tudo que Nara não queria era ser alçada à condição de musa da canção de protesto.

Mas não só isso. O que Nara não poderia supor nem em seus mais exóticos pesadelos é que a música de protesto seria absorvida pela indústria cultural de massas, transformando-se em produto com forte atração de consumo. As canções engajadas viraram moda. E mesmo músicos icônicos exaltadores do purismo bossanovista, como os irmãos Paulo Sérgio e Marcos Valle, dão um cavalo de pau e passam a compor suas músicas de protesto, cujo exemplo mais candente é a belíssima “Viola Enluarada”, da dupla. A conversão dos surfistas Valle foi particularmente um pouco demais para Nara, que decide dar uma nova guinada.

Quando todos convergiam em direção ao engajamento, para surpresa geral, tanto dos puristas da Bossa Nova quanto dos esquerdistas do CPC da UNE, Nara embarca na contramão. Ao invés de dar voz às contradições ao morro e à miséria do Nordeste, prefere gravar uma singela e despretensiosa retreta, “A Banda”, do iniciante Chico Buarque. “A Banda” foi defendida por Nara e Chico no II Festival de Música Popular Brasileira, em 1966. Ganhou de barbada. Por exigência de Chico, o prêmio de primeiro lugar foi dividido entre “A Banda” e “Disparada”, de Vandré, magicamente interpretada por Jair Rodrigues. “A Banda” catapultou Chico e Nara aos braços do povo, tendo Chico, inclusive, tomado o lugar do Roberto Carlos como “Namoradinho do Brasil”.

Como uma espécie de premonição de uma incômoda e torturante situação que seria cantada por Chico quinze anos mais tarde, na canção “A Voz do Dono e o Dono da Voz”, do álbum “Almanaque”, o autor e a interprete se veem enredados na pesada máquina de marketing da indústria fonográfica, na superexposição máxima e na torturante roda viva da divulgação em rádios, emissoras de TV e apresentações. “A Banda” marca a carreira dos dois artistas como uma espécie de maldição. Chico jamais voltaria a cantá-la em apresentações ou gravá-la. Nara pede um tempo de tudo, para o mundo e desce.

A capa de 'Dez Anos Depois', que marca a reconciliação com o passado bossanovista
A capa de ‘Dez Anos Depois’, que marca a reconciliação com o passado bossanovista

No ano seguinte ao da explosão de “A Banda”, casa-se com Cacá Diegues e planeja dedicar-se à casa e à maternidade. Mas como fazê-la em um ano como o de 1968, quando a linha-dura das Forças Armadas promove o golpe do golpe, no dia 13 de dezembro, com a decretação do AI-5. Uma semana depois, Caetano e Gil são presos. A ficha de Nara no Dops engordara desde a participação no show “Opinião”, quatro anos antes, sobretudo após a entrevista arrasa-quarteirão ao Diário de Notícias. E, também, por sua forte relação com o movimento Tropicalista e seus integrantes. Tanto ela quanto Chico despiram-se do modelo de bons moços e se tornaram ferrenhos adversários do regime. A barra começava a pesar. A repressão seguia todos os passos de Nara e estava obcecada em colocar as mãos nela e levá-la para os porões da tigrada. Na virada de 67 para 68 – e apesar da censura – Nara lançara dois álbuns (“Vento de Maio”, de 1967; e “Coisas do Mundo”, de 1968). Em janeiro de 1969, Chico parte para o exílio. Sugere o mesmo a Cacá e Nara. Urgentemente. No fim daquele ano, o casal se exila em Paris, fica por dois anos e Nara grava o sofisticado álbum duplo “Dez Anos Depois”, uma reconciliação com a Bossa Nova dos primeiros anos.

Livre de preconceitos e amarras estéticas e musicais, faltava justamente o reencontro com a turma bossanovista original para estar em paz com os artistas de todos os gêneros pelos quais transitou e que, em geral, não se misturavam. Nara estava bem com todos: o pessoal do samba-canção, do baião, do choro, do frevo, do morro, bossanovistas e tropicalistas, os engajados politicamente, os românticos, a jovem guarda e quem mais fosse. Decide celebrar essa multiplicidade no delicioso disco “Os Meus Amigos são um Barato”, de 1977, seguido por uma provocativa imersão à obra de Roberto e Erasmo, “…E que Tudo Mais Vá Para o Inferno”, no ano seguinte.

Nunca, jamais, em tempo algum uma cantora do top 10 da MPB se embrenharia de forma tão profunda no cancioneiro da dupla, vista com reserva, preconceito e repugnância pelos pares de geração de Nara, que deu de ombros aos críticos – e não foram poucos. E é delicioso na série “O Canto Livre de Nara” assistir ao depoimento atual de um Dori Caymmi ainda indignado com a ousadia da Nara no terreno romântico do Roberto, passados 44 anos do lançamento do disco.

Menescal, Nara Leão e Chico Buarque
Menescal, Nara Leão e Chico Buarque

Em 1979, Nara cai em seu banheiro e bate violentamente com a cabeça no chão, passando a alternar frases desconexas em português e em inglês. Não se sabe se a confusão mental foi resultado do forte impacto ou se ela havia caído justamente em razão de algum problema de saúde. Submetida a uma tomografia, identificou-se uma mancha em seu cérebro. Chamado pelo pai Jairo Leão, o neurocirurgião Paulo Niemeyer foi direto ao assunto: tratava-se de um tumor inoperável. Jairo pediu estrita confidencialidade a Niemeyer.

Em 1983, Jairo se suicida. Deixa uma longa carta às filhas Danuza e Nara, cujo teor nunca foi comentado por ambas. Mas não tocou no assunto do câncer. Nos seis anos seguintes ao diagnóstico de Niemeyer, a família Leão jamais suspeitaria sobre o segredo intransponível que explicaria as causas dos apagões, confusões mentais e ausências de Nara, que continuou com a vida normal, lançando discos, fazendo shows no país e no exterior. Quatro anos antes da morte de Nara, o namorado Marco Antonio Bompet, o secretário particular Miguel Barcelar e a irmã Danuza se empenharam por um novo diagnóstico e souberam a verdade. Coube a Barcelar revelar o tumor a Nara. Em maio de 1989, jantando com Danuza e amigos, Nara voltou com seu discurso desconexo, caiu, se debateu no chão e desmaiou. Nunca mais acordou.

Há duas semanas, o editor de Na Caixa de CD, Affonso Nunes, encomendou-me artigo sobre a série da Nara, recém-lançada pelo Globoplay. O enorme sucesso do documentário de Renato Terra gerou um sem-número de artigos e ensaios nos principais veículos impressos e digitais do país. Fui tomado por um forte sentimento de angústia por ter que escrever algo que diferenciasse do que já fora dito. E muito já fora dito. Quase tudo já fora dito. Me faltava um “gancho” criativo, uma linha diferenciada para analisar o vídeo biográfico de Nara. Optei por recontar a trajetória da intérprete de uma forma relativamente sintética, mas jogando luz sobre as principais passagens de sua vida. Não tive um encontro pessoal com Nara para me permitir um olhar diferenciado no texto. Nunca assisti a nenhum de seus shows para transmitir uma experiência pessoal única. Mas sempre a escutei. E a série me reaproximou dela. Espero ter dado conta do recado. A série é imperdível. E, Nara, uma mulher inacreditável.

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