
A amizade de Renato Teixeira e Fagner vem de longa data. Os músicos compõem juntos há alguns anos, mas só agora o desejo de lançar um álbum que registrasse esse cancioneiro tornou-se maior. A ideia surgiu com a troca de e-mails e tomou forma com o surgimento dos aplicativos de áudios e mensagens que permitem e facilitam a troca de músicas e letras, encurtando a distância física entre os dois.
O projeto ganhou vida agora na Kuarup, gravadora com quem Renato tem seis álbuns e costuma chamar com carinho de sua casa fonográfica. Tudo isso em função de uma incrível coincidência: as músicas foram captadas no porão onde fica o endereço atual da gravadora e que foi a residência de Renato nos anos 1970. No espaço, hoje batizado de Sala Renato Teixeira, o músico ensaiava e recebia alguns artistas para tocar e compor, entre os quais Belchior, Guilherme Arantes e o próprio Fagner, que em 1973 levou a fita de seu primeiro disco, “Manera Fru Fru, Manera”, para ouvir no estúdio improvisado. Como se não fosse pouco, foi neste endereço que Renato compôs “Romaria”, sua obra-prima atemporal.
O repertório de “Naturezas” é composto por dez músicas, sendo duas regravações: “Tocando em Frente”, a belíssima canção de Renato e Almir Sater, de tantas releituras Brasil adentro, e “Mucuripe”, um hino cearense composto por Fagner e Belchior.
Nas demais faixas, Renato Teixeira e Fagner pavimentam uma ponte entre o interior paulista e o sertão nordestino, territórios eivados de brasilidade. As influências e trajetórias distintas de cada artista não se chocam, e sim evocam territórios comuns, criando um feliz casamento musical.
O projeto reúne e mistura histórias, parcerias, composições, melodias, experiências, carreiras, estilos e naturezas diferentes. “Naturezas” tem participação especial do cantor e violeiro Almir Sater. Foi lançado nas plataformas digitais no último dia 20, data em que Renato completou 77 anos de idade. A edição física em CD sai em junho.
A bela arte gráfica do álbum foi leva a assinatura do saudoso Elifas Andreato, prestigiado e premiado designer, responsável por capas antológicas de discos dos mais importantes artistas da música popular brasileira, que nos deixou recentemente. A inédita capa do álbum foi a sua última criação para discos.
Renato Teixeira e Fagner abrem os trabalhos com dois clássicos criados com outros parceiros. “Tocando em Frente”, de Renato Teixeira e Almir Sater – os três cantam a canção – e “Mucuripe”, o clássico da dupla Belchior e Fagner, que também entra em cena para formatar uma espécie de saudação a esta parceria estreante.
Em seguida ouvimos “Arte e Poesia”, uma espécie de visão dos novos parceiros a respeito da vida moderna e onde eles se posicionam sobre o que possa ser melhor para si próprios nesses novos tempos.
“Eu Só Quero Ser Feliz” protagoniza o momento mais inusitado do trabalho. Por erro no envio de uma melodia para Renato Teixeira colocar letra, Fagner encaminhou uma gravação de uma música inédita de Antônio Adolfo que, por alguma razão, estava em seu arquivo no celular. Acontece. A canção chegou solada por um piano magnificamente bem tocado o quê levou Renato a desconfiar que Fagner mandava bem no piano. Surpreso com essa “revelação”, Renato se animou e foi logo metendo a caneta naquelas notas expressivas. “Era como se os versos já estivessem todos lá, pedindo para serem revelados”, lembra o compositor.
Para deixar o momento mais confuso ainda, surge a revelação de que já existia uma letra para aquela melodia, assinada por Fausto Nilo. Mas como nesse tipo de situação, ninguém tem culpa, foi o destino que quis assim e depois de algumas informações, todas por sinal muito bem humoradas, Renato acabou se tornando o mais novo parceiro de Antônio Adolfo, por culpa das circunstâncias.

Como grande intérprete que é, Fagner sentiu toda a verdade da bela música e diz como ninguém o recado da canção: a consciência de que temos o dom de sermos felizes e a determinação de irmos sempre nessa direção. Para dar mais peso na mensagem da canção Renato cita uma frase de dona Francisca, mãe de Raimundo que lhe disse, quando ele partia para se transformar no grande Fagner: “Cada um sabe de si”!
“Juro Procê”, cantada por Renato Teixeira, é uma espécie de sinopse do sonho hippie onde jovens confrontavam e contestavam valores opressores em torno dos quais se organizaram socialmente todas as gerações surgidas no pós-segunda guerra. Sem complexidades, simples e direta, “Juro Procê” propõem uma vida vivida à luz do tempo, onde para se achar o bom caminho é preciso haver carinho, um bom vinho e um violão.
“Eu Comigo Mesmo” vem na sequência e aí percebemos os dois parceiros indo numa mesma direção. A conclusão surpreendente da canção é quase uma celebração da parceria que o tempo todo mostrou a unidade desses dois compositores brasileiros que fazem parte efetiva do grande cast da música popular brasileira. As vozes combinam com suas naturezas, ora Renato acostumado a contar histórias do seu jeito levando a narrativa com a naturalidade de sempre, ora Fagner, transbordando a energia que fez dele um dos maiores cantores do mundo. É nesse momento que mostram o quanto pode ser rico um trabalho que soma naturezas, histórias, comportamentos e, principalmente, amor pela arte.
“Para O Nosso Amor Amém” fala do momento da cura, quando algo que não ia bem com a saúde de uma pessoa deságua no passado e sente-se a leveza que evidencia as melhores sensações que um ser humano pode desfrutar quando o destino lhe sorri. De certa maneira cada um já passou, em algum momento da vida, pelo alívio que traz a cura. Então surge novamente Almir Sater e o trio se recompõe para emocionados, cantarem juntos e em uníssono a canção que fala de fé, esperança e cura.
“Linda de Mansinho” é uma declaração de amor a alguém que foi embora e deixou a solidão em seu lugar. Mas a música, por mais torturante que seja a sua declaração de ausência, traz sempre uma aura de esperança. “Eu queria tanto abrir aquela porta e ver você chegando, linda de mansinho”.
“Rastros da Paixão” é uma homenagem ao compositor Evaldo Gouveia, vizinho da casa, onde Fagner nasceu e foi criado em Fortaleza. Evaldo era afilhado de seus pais. Essa coincidência artística tem detalhes significativos: Evaldo e Fares Lopes, irmão mais velho de Fagner, formavam uma dupla de cantadores de serestas de grande prestigio em Fortaleza e isso marcou muito a infância de Raimundinho, como a vizinhança costumava tratar o menino Fagner. Não fazia tanto tempo que Evaldo partira e, motivado pela emoção da despedida do inesquecível vizinho, surge a melodia inspirada no universo de amor onde Evaldo criou um dos mais belos repertórios da música brasileira. Renato Teixeira, que conhece bem a maneira de Gouveia desenvolver seus raciocínios, fez sua parte
A melodia de “Aqui é Ceará” chegou a Renato à capela, sem instrumentos. Renato estava voando para o Caribe e, para deixar a travessia mais interessante, colocou o fone e compôs a letra no ar, voando para um ambiente marítimo que lembra muito o Ceará. A métrica sugerida pela melodia conduz os versos. Renato confessa que além da homenagem ao estado de Fagner, a música reverencia também sua longa amizade com Belchior.