Resiliência é o Pixinguinha no crepúsculo dos deuses

pixinguinha
Lipe Portinho*
Especial para o Na Caixa de CD

Ser músico é, muitas vezes, com ou sem pandemia, uma luta interna existencial. Se não tivéssemos o drama em nossas almas não poderíamos tocar a de outro ser humano e os artistas que não têm essa tristeza escondida perecem. Devemos evitar, porém, sermos regidos pelas tragédias que pontuam as mudanças naturais no paradigma de nossas carreiras ou como sugiro no título, exemplo de resiliência é Pixinguinha no crepúsculo dos deuses e vou explicar o porquê seguindo o curso da História.

O compositor austríaco Joseph Haydn - Foto: Reprodução
O compositor austríaco Joseph Haydn – Foto: Reprodução

Muito antes do classicismo de Joseph Haydn (1732-1809), os grupos musicais foram aumentando de tamanho pouco a pouco e as queixas dos músicos cresciam na relativa proporção. Em cartas que Haydn nos deixou, podemos ler como ele sentia-se tratado igual a um escravo por ser impedido por seu patrão, o príncipe Anton Esterházy, de ir a Viena, no século XVIII. Em 1779, o compositor conseguiu reverter o péssimo contrato que tinha com o Príncipe e, enfim, se desvencilhou e foi conquistar musicalmente a Europa. Antes dele, Händel (1685-1759) migrou da Alemanha para Inglaterra, em 1710, fugindo do monarca de lá. Só não contava que o antigo patrão alemão iria tornar-se rei também da Inglaterra, o rei George I, quatro anos depois. Handel conseguiu contornar os fatos, voltou a se relacionar com o rei e passou quase meio século em Londres onde foi conhecido por resmungar numa língua própria (hábito comum entre músicos, diga-se de passagem) e de ter muito sucesso tanto com as encomendas musicais quanto com os contratos editoriais que estavam surgindo à época.

Outro excelente exemplo de adaptação aconteceu após a invenção do cinema falado, no meio dos anos 1920 nos EUA e quase anos 30 no Brasil. O cinema mudo e as orquestras dessas salas de projeção dominavam a cena. Aos poucos, alguns grupos foram trocados por apenas um único organista performando instrumentos complexos e em certos casos nunca passou de apenas um pianista acompanhando a película. Muitos trabalhadores tinham no cinema mudo um esteio financeiro ou entraram no meio musical por esse canal como Ernesto Nazareth, César Guerra-Peixe ou Radamés Gnatalli, por exemplo. O público se queixava da crescente perda de qualidade e da falta de criatividade no repertório (tocavam as mesmas músicas para qualquer filme) nas salas de projeção até que a tecnologia disruptiva chegou pelo nome de cinema falado trazendo o golpe fatal.

O crepúsculo das orquestras de cinema uniu os maiores artistas e músicos da época numa tentativa ultraconservadora de manter seus trabalhos através de uma intervenção estatal. Capitaneados pelo já consagrado saxofonista e arranjador Pixinguinha, o músico Donga e o maestro Napoleão Tavares, entre outros, reuniram-se em 1930 com o então presidente Getúlio Vargas para tentar frear o que entendiam como uma intervenção de agente externo – se não havia essa tecnologia no país em 1928/30 não podia ser outra coisa. Getúlio Vargas, antes de chegar à presidência, ainda deputado, em 1928, ensaiava as primeiras tentativas de regulação do trabalho e fez aprovar o decreto 5.492 (16 de julho de 1928) no qual estabelecia a obrigatoriedade de pagamento de direitos autorais pelas emissoras de rádio e empresas que veiculassem ou incluíssem músicas em sua programação. O mesmo decreto também regulava as empresas de diversões, a contratação dos serviços teatrais e, principalmente, regulamentava a profissão dos artistas de variedades (incluindo palhaços, músicos, malabaristas, coristas etc.). Em relação à chegada do cinema falado, porém, o poder de Getúlio não foi o bastante e ficou impossível frear a nova tecnologia. De forma resiliente, os baluartes da música brasileira buscaram novos caminhos e muitos migraram para as rádios.

O fim do mercado do cinema mudo, a insubordinação perante mandatários, a busca de novos mercados nos ensina que há saídas para situações crepusculares. Melhorar a qualidade dos serviços prestados através de novos processos formativos, negociar novamente os serviços dentro da realidade mercadológica vigente e procurar novas frentes de trabalho me parecem as mais factíveis e provavelmente é o que ocorrerá no mundo do trabalho pós-pandemia. Só será difícil amenizar essa crise existencial interna de séculos entre músicos, “pois pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza / senão não se faz um samba não”.

*Compositor, maestro, contrabaixista e Mestre pela UFRJ

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