Roberto Menescal, arquiteto de belas canções

Roberto Menescal
Capa do livro "Roberto Menescal - um arquiteo musical", de Claudia Menescal
Capa do livro “Roberto Menescal – um arquiteo musical”, de Claudia Menescal

A pandemia do coronavírus adiou, por tempo indeterminado, a 32ª viagem que o compositor, instrumentista e produtor Roberto Menescal faria ao Japão. Aos 82 anos, ele continua ativo e levaria com ele os colegas Carlos Lyra, João Donato e Marcos Valle para apresentações do CD “Os Bossa Nova”, que o quarteto lançou ano passado. Um dos pais da Bossa e autor de mais de 400 músicas gravadas no mundo inteiro, o autor de “O barquinho” tem milhagem suficiente para contar histórias por dias e dias a fio em meio ao oceano da Música Popular Brasileira. Apesar de ser personagem de inúmeros casos e estar sempre acessível para entrevistas e relatos não havia um livro que compilasse sua basta contribuição á nossa música e ao jeito de ver o Brasil. A jornalista, pesquisadora e historiadora Claudia Menescal, prima do artista, acaba de concluir “Roberto Menescal – um arquiteto musical”, que chega às livrarias nesta quinta-feira (19), uma boa opção de leitura para quem está em casa em dias de quarentena forçada.

Roberto Menesca
Roberto Menescal e o violão, em 1961. Foto: Acervo pessoal
Menescal, Bôscoili e Sõnia Delfino. Foto: Acervo pessoal
Menescal, Bôscoili e Sõnia Delfino. Foto: Acervo pessoal

O projeto surgiu há três anos, quando Claudia começou a ajudar Menescal a organizar seu acervo pessoal e descobriu raridades, entre fotos, gravações, discos, partituras, cartas e documentos antigos. Tive acesso às provas finais da obra lançada pela Futurama Editora. São 288 páginas de uma biografia não convencional, recheada
de fotos (300!) e depoimentos de amigos e artistas que conviveram com o artista. A obra é dividida em minicrônicas que pinçam histórias de Menescal, algumas bastante conhecidas e outras nem tanto. Uma delas é que seu encontro com Tom Jobim foi completamente ao caso, ainda que o jovem violinista autodidata Roberto fizesse um esforço grande para ir aos lugares onde o compositor estaria. Num belo dia, Tom estava na porta da escola de violão que ele mantinha com Carlos Lyra e com uma (tentadora) proposta. “Havia quase um ano que eu tentava falar com o Tom, mas nunca conseguia. Fui a uma dezena de festas, tentava afogar minha timidez em copos de cuba-libre. Ficava embriagado e não conseguia obter qualquer resultado. E naquele momento eu estava sóbrio e diante do meu ídolo. Ele disse que precisava de mim para participar de uma gravação para o filme Orfeu Negro. A decisão de jogar a faculdade de arquitetura pro lado e viver de música se firmou ali e deu no que deu”, conta Menescal, que chegou a recusar o cachê após o trabalho. No jantar que Tom lhe pagou em seguida, a conversa foi suficiente para o jovem músico traçar um novo rumo para sua vida.

A jornalista Claudia Menescal teve o mérito de reunir numa única obra histórias sobre Menescal que estavam espalhadas. Foto: Divulgação

A vida familiar, a juventude em Copacabana – quando morava no prédio em cima da célebre Galeria Menescal, construída pelo tio engenheiro, Humberto Menescal — os primeiros encontros com a turma da Bossa Nova, as musas inspiradoras, os amigos, as parcerias inesquecíveis com Ronaldo Bôscoli e Nara Leão, seu período como executivo de uma das gravadoras mais importantes do país (a Polygram), seu papel na redescoberta da Bossa Nova nos anos 1980 e a retomada de sua carreira como músico estão no livro. “Nossa diferença de idade parecia muito maior quando eu era pequena. Mesmo assim, acompanhei a carreira dele desde o início. Meu pai me contava tudo. Com o tempo, ficamos mais próximos e amigos. O livro é uma homenagem – explica Claudia, que acabou estabelecendo uma rota de navegação além do acervo pessoal do primo. “Pesquisei outras fontes: jornais, revistas, vídeos antigos, livros, entrevistas, acervos de museus e institutos culturais. E entrevistei informalmente pessoas que conviveram e trabalharam com ele”, acrescenta a autora.

Menescal com Leila Pinheira, uma das cantoras que ajudou a revelar. Foto: Acervo pessoal

Menescal conta que apoiou a iniciativa desde que a ideia lhe foi apresentada, mas assegura que só vai ler o livro depois que ele for lançado. Democrático e generoso, provavelmente vai se emocionar com os depoimentos que a prima reuniu de artistas, alguns deles apadrinhados por ele como Nelson Mota, Antonio Adolfo, Leila Pinheiro, Cris Delanno, Wanda Sá e Ruy Castro, entre tantos outros, que falam sobre amizade, generosidade, carreira, encontros e relação profissional.

Sua trajetória profissional é dividida em duas fases bem distintas. A do jovem instrumentista que participou de um movimento revolucionário da música brasileira, que só foi reconhecido pra valer no Brasil após a histórica apresentação do Carneggie Hall, em 1962, da qual Menescal quase não participou para ir praticar pesca submarina em Cabo Frio (foi convencido a ir por Tom Jobim). No palco, acompanhou cantoras como Maysa, Sylvinha Telles, nara Leão e Elis Regina. A outra foi o início de sua carreira como produtor musical na extinta gravadora Elenco (“Eu nunca recebi nada por aqueles trabalhos, mas fazia tudo o que queria”), assumir a direção musical de Elis e depois assumir a direção artística da Polygram no Brasil.

Menescal com Maria Bethania e Chico Buarque, em 1980, quando os dois artistas receberam discos de ouro por seus trabalhos. Foto: Acervo pessoal

Roberto Menescal reconhece que lidar com um cast de tantos artistas das mais variadas origens e formações abriu um horizonte de possibilidades, forjando uma das características destacadas por quem convive com ele. “Eu aprendi a escutar, ver o valor das coisas. No tempo da Polygram muitas vezes eu chegava com um disco em casa e a Yara (sua mulher) perguntar ‘Desde quando você ouve isso?’. Pois eu ouço de tudo”, conta Menescal, que aproveita para elogiar uma estrela da novíssima geração, Anitta.

Foi sob a gestão de Roberto Menescal na gravadora – foi para lá a convite de André Midani – que Chico Buarque de Holanda saltou de uma média de 15 mil ábuns vendidos para 350 mil (“Construção”, de 1971) – o produtor aceitou gravar a faixa-título de quase sete minutos (impensáveis para tocar nas rádios da época) e ainda incluir uma orquestra regida por Rogério Duprat. Ou quando fez com que Emílio Santiago saltasse de patamar
semelhante para 850 mil cópias vendidas no primeiro álbum da série “Aquarela brasileira”. “O Emílio não queria gravar aquele repertório. Dizia que não para o público dele. Saímos da Polygram na mesma época e ele, finalmente, aceitou a sugestão. A carreira dele explodiu ali. E o projeto ainda rendeu mais álbuns”, lembra Menescal, acrescentando que 90% dos artistas não costumam aceitar as sugestões de produtores.

A saída da Polygram se deu no início da década de 1980. “Aquela geração de presidentes de gravadoras que
foram músicos ou produtores foi dando lugar a executivos, gente do administrativo. Trocaram a clave de
sol pelo cifrão. Já não era mais um lugar para mim”, justifica.

Roberto Menescal sustenta que seu início como produtor se deu num momento pós-Bossa Nova que eclodiu na
redescoberta do samba, na chegada da geração tropicalista, no Clube da Esquina, na Jovem Guarda, ou seja, a ramificação da música brasileira. “Era tudo experimental. Não havia restrição para por dezenas de músicos no estúdio para produzir uma canção”, compara. Mesmo assim, a Bossa Nova jamais perderia seu espaço, sendo o próprio Menescal um dos protagonistas desse processo. Veja, abaixo, seu show histórico com a cantora Wanda Sá por ocasião dos 40 anos da Bossa Nova, em 1998:

Capado álbum “Julie is her name”, da cantora Julie London, de influência marcante no movimento que viria ser conhecido como Bossa Nova.

Ídolo na música? Sim, ele tem! O guitarrista americano Barney Kessel que, em 1958, gravou com a cantora Julie London o icônico álbum “Julie is her Name”, reconhecido por ele como a grande inspiração melódica, harmônica e estética da Bossa Nova. Ao ouvir aquele disco trazido dos Estados Unidos pelo amigo Chico Pereira, tratou de reunir os amigos violinistas, entre os quais Carlos Lyra e Baden Powell. “Combinamos de dividir as canções entre nós para tirá-las no violão, acorde por acorde. “Barney Kessel é o meu herói da guitarra e do violão. Nunca tive o privilégio de conhecê-lo mas, certa vez numa gravação num estúdio em Londres, um instrumentista me disse que havia estado com o Kessel uns dias antes e que havia me mandado um abraço. para mim, foi uma glória”, conta, com  simplicidade.

Veja um pouco do trabalho de Roberto Menescal como instrumentista em apresentação ao vivo no programa Instrumental Sesc Brasil, realizado em 2012. O acompanham os músicos Adiando Giffone (baixo elétrico), João Cortez (bateria), Adriano Souza (teclado) e Jessé Sadock (trumpete):

Fora da multinacional, retomou sua carreira como músico  e estabeleceu uma relação especialíssima no Japão, onde a música brasileira e a Bossa Nove em especial são veneradas. Lá, criou um selo musical em sociedade com o ex-jogador Zico, outro brasileiro adorado na terra do sol nascente. Hoje, do alto de sua experiência e à frente da Albatroz Music, selo que criou em 1992, continua mais ativo do que nunca. Tocando, compondo, fazendo shows, produzindo discos extremamente bem cuidados – assim como as bromélias a cujo cultivo dedica-se com afinco diário na casa de vasto quintal onde hoje vive na barra da Tijuca. Com mãos de jardineiro, lança novos nomes da MPB e, atento às novidades, dissemina o gosto pela boa música junto às novas gerações.

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