Sérgio Ricardo, o Sérgio Bom de Tudo

Maninho Pacheco
Especial para o Na Caixa de CD

 

O aspecto menos relevante da rica biografia e obra de Sérgio Ricardo foi o episódio do violão, no Festival de 67, em resposta às vaias de um público chocado com a belíssima dissonância de “Beto Bom de Bola” e inconformado com a derrota da canção “Balada do Vietnã” (David Nasser e Elizete Sanches), defendida por Simonal. Lamentavelmente foi o que o tarjou para grande parte dos que não tiveram a rica experiência de mergulhar nas profundezas de sua arte. Sobretudo diante da crueza da cena, em preto e branco, que registra a íntegra do gesto extremo do músico, recorrentemente repetida nos anos seguintes. E vociferada em tons condenatoriamente moralistas por gente como Flávio Cavalcanti. Aquilo marcou e me faria associar o nome de Sérgio Ricardo a algo violento. Causando-me medo. E curiosidade.

O fascículo dedicado a Sérgio Ricardo na séria História da MPB editado pela Abril nos anos 1970 – Foto: Felipe Tadeu

No primeiro trimestre do ano de 1970, a Editora Abril lançaria nas bancas, em 48 fascículos, a clássica coleção “História da Música Popular Brasileira”, que duraria até o ano seguinte. A série foi relançada e ampliada em 1976 com o nome de “Nova História da Música Brasileira” e durou até o ano seguinte. Foi ainda distribuída uma terceira vez, em 1982.

Os fascículos consistiam em um LP de dez polegadas, seis faixas cada lado, encartado em um caderno com 12 páginas de textos e imagens que misturava biografia, ensaio e crítica musical de um grande compositor brasileiro e que hoje é um dos principais documentos históricos da indústria fonográfica e da música brasileira do século 20.

O projeto era pilotado por Pedro Paulo Popovic, Ary Coelho e Balfour Zapler. O trabalho de pesquisa e apresentação era primoroso. A seleção de repertório e a produção dos textos dos fascículos foram entregues a pesquisadores, jornalistas e críticos renomados do calibre de José Lino Grünewald, Tinhorão, Júlio Medaglia, Almirante, Aracy de Almeida, Augusto de Campos, Capinan, Ezequiel Neves, Fernando Faro, Lúcio Rangel, Rogério Duprat e Sérgio Cabral, sob a coordenação de Tárik de Souza. E o grande charme dos fascículos eram os encartes, com direção de arte do iniciante Elifas Andreato, recém-chegado em São Paulo, do Paraná.

Foi meu rito de iniciação ao que de melhor se produziu (e se produzia) na música composta no país. O fascículo-disco de Sérgio Ricardo saiu em 1971. Ali, o conheci verdadeiramente. O monstro-destruidor-de-violão se desfez. Nasceu a admiração. Uma obra-prima, aquele 37º fascículo. De uma só tacada, todos os seus clássicos. Do Sergio Ricardo sambista (“Zelão”), ao bossanovista (“Pernas”, “Folha de papel” e “Conversação de paz” – Sérgio romperia com a Bossa Nova e desembarcaria na canção de protesto, junto – e assim como – com Carlinhos Lyra e Nara), passando pelo o afrosambista (“Esse mundo é meu”, com Ruy Guerra) e repentista (“Jogo de dados”, “Perseguição” e “Sertão vai virar mar”, os dois últimos em parceria com Glauber Rocha).  Assista aqui uma animação produzida pelo próprio Sérgio Ricardo para seu clássico “Zelão”.

Capa da trilha sonora de 'Deus e o Diabo na Terra do Sol' - Foto: Reprodução
Capa da trilha sonora de ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’ – Foto: Reprodução

A propósito de Glauber, não me recordo quando exatamente surgiu minha devoção estético-intelectual por ele. Seguramente na transição da infância para a pré-adolescência. Glauber se transformou em ídolo muito antes de assistir a um de seus filmes – o primeiro foi “Terra em Transe”, o que mais gosto. Mas foi em “Deus e o Diabo na Terra do Sol” que se abateu sobre mim todo o poder da imagem e narrativa glauberiana somadas a não menos poderosa trilha, quase um filme dentro do filme, assinada por Sérgio Ricardo em parceria com o cineasta. O que não foi a primeira trilha de Sérgio para filmes de Glauber: também as fez para “Barravento” e o próprio “Terra em transe”, de que tanto gosto.

Mesmo aí, cabe um parêntesis: Sérgio foi, ele próprio, um cinemanovista. Seu primeiro filme, o curta “Menino da Calça Branca”, de 1961, montado por Nelson Pereira dos Santos, correu os festivais internacionais de cinema junto ao pacote de longas de Glauber, Cacá e do próprio Nelson. Não fosse apenas por esse feito, a incursão de Sérgio na linguagem do Cinema Novo já seria notável por excelência. Mas foi além: estava em seu DNA. Sérgio é irmão de Dib Lutfi, ,o fotógrafo do Cinema Novo. Se aquele Movimento possui uma linguagem conceitual-ideológica, deve o fato a Glauber; se o possui sob o ponto de vista estético, deve às imagens e tons em escala de cinza concebidos por Lutfi.

Desde há muito, me transformei em um obstinado pesquisador-apreciador de Sergio Ricardo. Um dos primeiros salários que recebi, comprei dois Sergio: os álbuns “Do lago à cachoeira” (1978), que lançaria as belíssimas “Tarja cravada”, “Ponto de partida” e “Contra maré”; e a coletânea “Vandré e Sergio Ricardo”(1980), com destaque para as politizadíssimas “Vou renovar” (cantada por Sergio, no Riocentro, no fatídico Dia do Trabalhador do atentado, em 1981) e “Calabouço” (em homenagem ao estudante Edson Luis, assassinado no restaurante homônimo, no Rio, em 1968).

Cartaz de 'Esse Mundo é Meu' - Foto: Reprodução
Cartaz de ‘Esse Mundo é Meu’ – Foto: Reprodução

Assisti filmes sob sua direção (“Esse Mundo é Meu”, 1964; e o genial “A Noite do Espantalho”, com Alceu, 1973) e roteiro (“Juliana do Amor Perdido”, 1970), li pelo menos dois de seus livros (“Elo: Ela”, 1982, de poesias; e “Quem Quebrou Meu Violão”, 1991, ensaio sobre MPB, em que detalha o episódio que lhe conferiu notoriedade), show (sala Funarte, como parte do Projeto Seis e Meia), além de conferir ao menos duas exposições de suas belíssimas telas abstratas, marinas, oníricas e sensuais em uma galeria de Ipanema, na quadra da praça General Osório – Sérgio terminou seus dias sobrevivendo monasticamente dos parcos direitos autorais que pingavam em sua conta bancária e das vendas de seus quadros.

Sergio já morava há anos na comunidade do Vidigal, Zona Sul do Rio, quando o vi pessoalmente e falei com ele pela primeira e única vez. (É histórica a passagem em que ele sobe seu piano de cauda – era um pianista primoroso – pelas vielas da comunidade até sua casa, numa espécie de platô do morro, com vista deslumbrante para o mar.) Corria uma das edições da Maratona do Rio. No aclive da Avenida Niemeyer, por volta do quilômetro trinta e alguma coisa, o trajeto passa pelo acesso do Vidigal, onde os moradores assistem a corrida de camarote. Dei uma parada e perguntei a um morador se conhecia o Sergio Ricardo. “Olha lá ele”, apontou para o mais ilustre dos moradores da favela. Estava em uma espécie de trailer-bar, tomando uma cerveja com amigos. Me aproximei, fiz-lhe uma saudação com braços estirados e flexionando o corpo. E diz-lhe: “Prazer conhecê-lo, Sergio, sou seu fã”. Ele sorriu – sorriso largo – e agradeceu. Parabenizou-me, por corredor, e desejou boa corrida.

Naturalmente não ganhei a Maratona – nunca ganhei nenhuma, das que participei. Mas ganhei o dia. Ganharia muito mais, para a vida inteira.

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