Zé Ramalho e a coragem de rever com olhos novos uma miragem

Felipe Tadeu, de Darmstadt (Alemanha)*
Especial para Na Caixa de CD

Tinha tudo para ser um passo em falso, um retumbante estabaco em cena aberta, mas a maturidade artística do Zé Ramalho da Paraíba e de Robertinho do Recife falou mais alto, na hora de entrarem no estúdio e começarem com as gravações daquela que seria uma coletânea comemorativa dos 20 anos de carreira de um dos mais originais criadores musicais que surgiram na fértil década de 70. As gravadoras mais poderosas, as outrora majors, sempre acalentaram os projetos rememorativos, de reciclagem de repertórios já consagrados pelo público, pelo que eles têm de baixo risco e pouco custo. A indústria fonográfica, genericamente falando, dos anos 80 para cá, foi se desvencilhando cada vez mais de tudo que fosse muito criativo. Por mera estupidez e a vocação suicida de seus capitães glutões.

Zé Ramalho e Robertinho do Recife durante as gravações da antologia acústica - Foto: Gabriel Paiva
Zé Ramalho e Robertinho do Recife durante as gravações da antologia acústica – Foto: Gabriel Paiva

Esse poderia ser o caso desse álbum duplo, mas não. “Zé Ramalho – 20 Anos Antologia Acústica”, que teve Robertinho como produtor, acabou se tornando uma verdadeira obra-prima. Primeiro porque aquele reencontro de Zé e Robertinho no estúdio Lagoa, no Rio de Janeiro,  reafirmava mais uma vez, a sorte deles dois terem, um dia, feito parte de um grupo na capital pernambucana chamado Arame Farpado, ao lado de Flaviola, Lula Côrtes e outros pós-tropicalistas, e que ficou inédito em termos de disco. Com direção artística de Sérgio de Carvalho para a BMG (Ariola) a antologia foi a melhor das recompensas que um ato de coragem pode representar para um compositor ímpar, até em termos de alta oscilação criativa, como é Zé Ramalho.

Quem conhece os maravilhosos álbuns iniciais do artista de Brejo da Cruz (sim, aquela mesma cidade celebrizada por Chico Buarque em canção homônima, situada a 380 quilômetros da capital paraibana, João Pessoa), sabe o quanto eles têm de monolitos. “Zé Ramalho”, de 1978 e “A Peleja do Diabo Com o Dono do Céu”, de 1979, são irretocáveis. Como conseguir superar, por exemplo,  o peso daquela zabumba que abre a versão instrumental de “Bicho de 7 Cabeças” (Zé Ramalho/ Geraldo Azevedo & Renato Rocha) no disco de estreia oficial (mais tarde, seria reeditado o anterior “Paêbiru”, de Zé com Lula Côrtes) do Zé? E o teclado sideral luminoso que abre a emblemática “Avôhai” que, por graça do produtor do disco Carlos Alberto Sion, foi tocado por ninguém menos do que Patrick Moralez, do Yes? E a guitarra lancinante de Pepeu Gomes em “Jardim das Acácias”, faixa do segundo LP do brejeiro músico, rei da psicodelia dos sertões mais improváveis? Quanta heresia de Robert Little (como Robertinho do Recife era conhecido nos States, na temporada em que viveu lá), em mexer nessa casa de marimbondos que eram “Eternas Ondas”, “Banquete de Signos”, “Chão de Giz”, “A Terceira Lâmina”, com cítaras nada gratuitas, guitarras portuguesas, violas caipiras, né?! Segue o impecável resultado:

Truque mercadológico?

A rigor, essa sagrada compilação deveria sair em 1998, já que ela ganhou o selo de “20 Anos Antologia Acústica” do título, não é mesmo, atentos leitores? Seria mais um truque mercadológico de uma famigerada major? Não, ledo engano. No encarte do disco primeiro, está lá em português: gravado nos estúdios CBS, 8 canais, em novembro/dezembro 1977 (é o que consta, no encarte do CD). Ou seja, a estreia nas lojas foi em 78, mas o vinil ficou pronto no final do ano anterior.

O grande trunfo desse álbum duplo são os arranjos surpreendentes, interpretados por músicos da estirpe de Dominguinhos (brilhante em ” Terceira Lâmina”), as percussões de Zé Gomes e Firmino, o baixolão de Arthur Maia, o barão vermelho Roberto Frejat com guitarra acústica, o seminal Geraldinho Azevedo, dos primórdios da trilha de vida do retirante lunar Zé Ramalho.

Diz a lenda, que o disco emplacou mais de 750 mil cópias vendidas. Pode ser, mas mereceria ainda muito mais esse Zé Ramalho, conterrâneo do poeta do absurdo, outro Zé, o de Limeira. Na compilação há inclusive uma versão do artista paraibano para o clássico “Knockin’on Heaven’s Door” de Bob Dylan, canção que fecha o disco. Tudo a ver , porque desde que Zé Ramalho tocava na banda de Alceu Valença, que o jornalista Nelson Motta o chamava de “Bob Dylan da Caatinga”, isso por volta de 1975. “Essa história de eu cantar meio que arrastado, que é meu jeito, o Nelsinho muito esperto percebeu e fez uma matéria no jornal (…). Eu fiquei muito marcado com esta coisa do Dylan, mas me orgulho até hoje disso”, contou Zé Ramalho a Marcelo Fróes e Elias Nogueira, em entrevista concedida ao tablóide carioca de música International Magazine, em junho de 2002. Questionado se ele teve mesmo alguma inspiração do norte-americano, Zé foi taxativo: “Com certeza. Ele me ajudou em muitas partes da minha vida, assim como Otacílio Batista e Diniz Vitorino, que eram tocadores de viola. Eles foram meus mestres na teoria da cantoria e nos truques. Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Roberto Carlos e Renato e Seus Blue Caps, todos são meus mestres aqui no Brasil. Lá fora, os Beatles, Mick Jagger, Roger Waters, Bob Dylan e Elvis Presley”, disse Zé.

Outro detalhe importante da beleza desse trabalho é a xilogravura de Ciro Fernandes que enfeita a capa, em projeto gráfico muito feliz de Cristina Cruz.

Nem toda antologia que vai parar nas lojas é mesmo antológica. Mas a dobradinha de Zé Ramalho com seu produtor Robertinho do Recife, exímio guitarrista, é coisa mesmo à altura do cancioneiro visionário de Brejo da Cruz. Um álbum de que vale muito a pena lembrar.

 

*Poeta, jornalista e apresentador e produtor do programa Radar Brasil, na Rádio Darmstadt (Alemanha)

 

 

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