Zeca, Chico e o cancioneiro da Revolução dos Cravos

Por Maninho Pacheco

Na quinta temporada da série espanhola “La Casa de Papel”, o final épico e poético da personagem Tóquio, que se sacrifica ao se ver cercada pelo exército, é embalado por uma canção interpretada, como um réquiem, pelos cantores Pablo Alborán e Cecilia Krull. Trata-se de “Grândola, Vila Morena”, do português Zeca Afonso. A música funciona naquele episódio como o gatilho para o levante da resistência com ainda mais gana do que antes. A escolha da trilha não foi aleatória. “Grândola, Vila Morena” foi o hino oficial da Revolução dos Cravos desde quando a leitura de sua primeira quadra foi levada, na madrugada do dia 25 de abril de 1974, pelo locutor Leite Vasconcelos para todo o território português, através do programa “Limite”, da Rádio Renascença, de orientação católica.

A leitura dos primeiros versos da canção de Zeca, seguida, posteriormente, pela execução da música na íntegra, foi articulada como uma senha para que os militares da esquerda democrática e anticolonialista do Movimento das Forças Armadas (MFA) saíssem das casernas em levante contra a ditadura salazarista, havia 48 anos, e dessem início à Revolução dos Cravos. (Houve uma primeira senha, um pouco mais cedo, na noite do dia 24, quando a Rádio Emissores Associados de Lisboa tocou “E depois do Adeus”, de Paulo de Carvalho, para deixar os insurretos em alerta).

Zeca Afonso foi o autor da canção que se tornou hino da Revolução dos Cravos - Foto: Reprodução
Zeca Afonso foi o autor da canção que se tornou hino da Revolução dos Cravos – Foto: Reprodução

A canção de Zeca já havia, no entanto, conquistado corações e mentes lusitanos pelo menos três anos antes. “Grândola, Vila Morena” é a quinta faixa do álbum “Cantigas do Maio”, gravado pelo compositor em 1971. Na gravação, o som dos passos rítmicos sobre algo como um piso de brita define o ritmo da canção e evoca a marcha libertadora dos militares insurretos para Lisboa.

Em cima do lance, uma antenadíssima e cada vez mais politicamente posicionada Nara Leão grava em Portugal, no mesmo 1974 da Revolução dos Cravos, no olho do furacão dos acontecimentos, o raríssimo compacto simples (EP) “A Senha do novo Portugal”, pelo selo Philips daquele país. No lado A, “Grândola Vila Morena”; no B, “Maio maduro Maio”, também de Zeca Afonso. O disco nunca foi lançado no Brasil. Os temas só seriam recuperados em 2002, no disco “Raridades 2”.

A ousadia de Nara inicialmente passou despercebida à censura brasileira. Mas logo os militares acenderam o sinal vermelho. Em 9 de novembro de 1974, o ofício 165/74 – DOPS/CCP alertava sobre o perigo da canção símbolo do 25 de abril ser executada nas rádios e distribuída pelo país. O documento reconhece que a composição do português Zeca Afonso “foi a senha para o desencadeamento da Revolução em Portugal, e hoje, representa naquele país como que um símbolo nacional”.

Mesmo vetada, a interpretação de Nara tocou regularmente na Rádio Continental de Porto Alegre, “no horário das 12h às 13h”, conforme documento indignado assinado pelo III Exército Brasileiro. Em resposta, o diretor da Censura Romero Lago estranhou a revolta dos militares, uma vez a execução de “Grândola” estava autorizado pela Censura Federal desde 20 de Maio de 1974 para poder ser gravada pelo inofensivo cantor luso-brasileiro Roberto Leal, afamado pelos militares.

No ano seguinte à Revolução dos Cravos Chico Buarque gravaria a canção-homenagem à Revolução dos Cravos “Tanto Mar”. A primeira versão, como em tantos outros casos do compositor, foi integralmente vetada pela ditadura brasileira e acabou sendo lançada apenas em Portugal, onde “fazia a primavera”. A letra original, censurada, dizia: “Sei que estás em festa, pá/Fico contente/Enquanto estou ausente guarda um cravo para mim/Eu queria estar na festa, pá/ Com a tua gente/E colher pessoalmente uma flor do teu jardim/Sei que há léguas a nós separar/Tanto mar, tanto mar/Sei também quanto é preciso, pá/Navegar, navegar/Lá faz primavera, pá/Cá estou doente/Manda urgentemente algum cheirinho de alecrim”.

Naquele mesmo ano de 1975, Chico gravaria com Bethânia, no Canecão, o álbum “Chico Buarque e Maria Bethânia ao vivo”. Vetada, “Tanto mar” foi a única canção executada de forma exclusivamente instrumental. Na última apresentação da turnê, Chico decide cantar a letra. A versão do disco com Bethânia de “Tanto mar” e a letra com Chico ao violão só seria distribuída em Portugal e hoje é um raro objeto de desejo de colecionadores. Três anos mais tarde a canção é liberada. Mas a letra otimista, esperançosa e factual da primeira versão já não fazia mais sentido, tanto por conta dos descaminhos tomados pela Revolução quanto por conta justamente de sua factualidade. Chico, então, grava “Tanto Mar” com a letra atual, inteiramente modificada, com uma forte carga saudosista e pessimista. Ficamos aqui com a versão original, pois é proibido proibir, ó pá!

A meu ver considero “Tanto mar” um desdobramento natural de “Fado Tropical”, letra de Ruy Guerra para a melodia de Chico. “Fado Tropical” foi lançada no álbum “Chico Canta”, um ano antes da Revolução dos Cravos, e é parte da trilha sonora da peça “Calabar: o Elogio da Traição”. A letra tece uma crítica à colonização portuguesa e faz referência à ditadura militar no Brasil e à ditadura salazarista, derrubada pelo Movimento do 25 de abril. Se por um lado “Tanto Mar” mostrava o entusiasmo contagiante desse importante evento da história portuguesa, “Fado Tropical” denunciava que o Brasil vivia sob uma ditadura. E afirmar depois do 25 de abril que o Brasil seria “um imenso Portugal” ganhava um novo significado. Era o mesmo que dizer que uma revolução poderia varrer os militares do poder. Porém, a própria ditadura conseguiu apresentar um novo significado à canção, ao rejeitá-la. Os militares jamais admitiram o título de ditadura e, para eles, afirmar que o Brasil iria se tornar “um imenso Portugal” era o mesmo que dizer que estávamos vivendo sob uma ditadura. A carapuça serviu e a música se tornou uma ofensa.

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